Rádio Câmara

Reportagem Especial

A luta para levar o abuso sexual a julgamento

13/08/2012 - 09h51

  • A luta para levar o abuso sexual a julgamento (bloco 1)

  • A violência sob o manto da impunidade (bloco 2)

  • A invisibilidade das vítimas e a falta de atendimento (bloco 3)

  • A espera pelo atendimento que não chega (bloco 4)

  • As vítimas silenciosas e o Estado que não vê (bloco 5)

Divulgação
Selo concurso Tim Lopes

“A fragilidade violada – abuso sexual contra crianças e jovens com deficiência” é a Reportagem Especial que a Rádio Câmara veicula entre os dias 13 e 17 de agosto. Em cinco matérias, a série faz um panorama de como o tema aparece em quatro estados do país, além de Brasília. A série foi ganhadora da categoria Rádio do VI Concurso Tim Lopes de Jornalismo Investigativo, realizado pela ANDI e Childhood Brasil (Instituto WCF), com o apoio do UNICEF, da OIT, da FENAJ e da ABRAJI. Em vez de premiar matérias já finalizadas, o Prêmio Tim Lopes escolhe projetos sobre a temática do abuso e exploração sexual contra crianças e adolescentes, os quais recebem apoio para serem realizados.

A equipe coordenada pela jornalista Daniele Lessa Soares viajou para diversas cidades, incluindo Manaus, João Pessoa, Florianópolis e São Paulo. O retrato feito pela série é dramático: O Brasil ainda não tem estrutura para atender crianças e jovens vítimas de violência sexual, e quando o crime atinge pessoas com deficiência, a ausência de políticas públicas fica ainda mais clara. A série também aponta as ações que estão acontecendo na Câmara, dentro da CPI da Exploração Sexual, bem como os projetos de lei em análise que abordam a violência contra pessoas com deficiência.

Na primeira matéria, do interior de São Paulo, a repórter Daniele Lessa Soares conta a história de uma família que está lutando para levar uma denúncia de abuso a julgamento.

TEXTO

O desejo do menino de nove anos é colocar um terno para conversar com o juiz. O pedido? Ele quer um segurança para ir até a praça sem medo.

O abuso sexual teria acontecido há dois anos e as fobias continuam até hoje. Mas o que se vê é uma criança falante e bem articulada. Olhos e ouvidos curiosos com a visita, ele falou do cotidiano na escola pública onde estuda hoje. Há dois anos, a mãe o tirou da APAE, a associação que tem unidades em todo o país e atende crianças com vários tipos de deficiência. A família fez um boletim de ocorrência contra um técnico de enfermagem que trabalhava no local. A mãe relembra a reação da criança e qual sua expectativa depois de ter feito a denúncia.

"O médico falou que não aconteceu nada, mas o moleque tava machucado, tá com medo, tremia que nem uma vara verde, não queria ir mais. A gente que é mãe vai pensar o que? Eu não vou, ele gritava. Eles falam: você quer conhecer o cara porque, o que você vai fazer com ele? Nada. Ele é uma pessoa doente, precisa de tratamento e de um castigo e isso o juiz pode dar."

A história dessa família é um retrato do grande desafio brasileiro no enfrentamento à violência sexual: conseguir atendimento adequado para a vítima e levar o acusado a julgamento. Um caminho onde a criança recontou sua história muitas vezes. Um caminho onde a família insistiu para que as marcas da violência no corpo não fossem ignoradas.

A cidade é Aguaí. Com cerca de 32 mil habitantes, a município paulista fica a 200 quilômetros da capital. Em 2010, depois das denúncias de abuso chegarem à promotoria, toda a diretoria da APAE foi afastada por ordem judicial. O acusado de abuso foi demitido e se mudou para outra cidade. Um interventor foi nomeado pelo governo local, como conta o assessor de imprensa da prefeitura de Aguaí, Jorge Luiz Costa.

"A gente acredita que o mais grave nesse caso da APAE de Aguaí foi a tentativa de acobertamento, porque houve uma sequencia de abusos que foram levados ao conhecimento da direção, que tentou esconder. A diretoria foi toda afastada, a decisão da juíza na época foi dura, ela impediu inclusive a aproximação das pessoas da diretoria do prédio da entidade. Na minha opinião, fica um alerta porque infelizmente essas coisas acontecem e não podem ser escondidas, tem que ser denunciadas mas da maneira correta, sem que se prejudique a entidade e se prejudique pessoas envolvidas."

A mãe relata que sofreu pressões para retirar a denúncia.

"Aí vem o fato que aconteceu com meu filho: ah, ele não sente nada, então vamos fazer o que a gente quer, né? E depois ainda vem pedir pra mim tirar o BO, falar que ele não bate bem da cabeça, que foi ele mesmo que fez, que eu estava acreditando em uma invenção de criança. Eu não vou abafar. Então eu me sinto no direito de ir até o fim. Somos gentes iguais."

Há dois anos, depois de ser ignorada pela diretoria da APAE, a mãe buscou atendimento no posto de saúde local. No mesmo dia, foram para uma cidade vizinha, para exames no IML. A mãe e a conselheira tutelar Isabel Antônia relatam que o médico examinou a criança de forma superficial e já atestou que não houve abuso. Durante todo esse trajeto, a conselheira confirma que a criança foi coerente no seu relato.

"E tudo ele queria saber porque ele é uma criança muito esperta. Ele foi daqui lá contando histórias, mas sempre girava em torno, as histórias que a gente perguntava, as história do dia a dia na escola, o que ele gostava, tudo girava em torno dessa pessoa. Ele foi muito objetivo nisso? Foi, muito taxativo em cima dessa pessoa."

A mãe não desistiu e foi até o hospital das clínicas da Unicamp, onde desde então o filho faz acompanhamento psiquiátrico. Por razões éticas, a equipe do hospital não fala sobre o caso e o processo corre em segredo de justiça. Mas o professor e psiquiatra infantil da Unicamp, Antônio Carvalho, explica porque acreditar no relato da criança é essencial.

"Acreditar no relato da criança é um dos fatores que mais ajudam na recuperação. A criança perceber que teve um adulto que abusou dela, mas que tem outros adultos que são contra o abuso, que vão tentar punir o abusador, que vão ajudá-la nas sequelas que ela ficou a partir do abuso, que acham isso errado. O tratamento médico, o processo judicial que se sucede a um abuso sexual quando a família faz um boletim de ocorrência e revela para a polícia, ele ajuda na recuperação da criança em termos de credibilidade em relação ao adulto."

Em Aguaí, a família mora em uma casa simples e muito arrumada. Só o marido trabalha e já houve momentos de muita dificuldade financeira. No início da denúncia, eles perderam a ajuda que recebiam da APAE, como leite em pó e fraldas. Mas, com uma dignidade impressionante, a mãe afirma que nunca pensou em desistir.

"Tudo o que meu filho não sente eu sinto. Arregaça as mangas, viu alguma coisinha errada vai e briga. Vai em frente. É impossível que alguém não vai ouvir. Agora se guardar e ficar, nada vai ter melhora, nada vai mudar. Os deficientes não vão ser vistos, as mães não vão ser reconhecidas. Porque a gente deixa de cuidar da gente pra cuidar daquela criança, por amor. Eu ouvi quando ela falou pra mim: a minha filha arrumou barriga lá. Eu falei, e o que você fez? Nada."

O interventor que foi nomeado há dois anos para administrar a APAE de Aguaí, Alan Sereni, recebeu a reportagem e falou das mudanças que foram implantadas: câmeras de segurança na escola e ao menos dois profissionais presentes na hora do banho ou na troca de fraldas. Em pouco tempo, distorções impressionantes foram corrigidas.

"Um entidade que tem quase que 70% de cadeirantes, todos os banheiros da instituição não passavam cadeira de rodas. Acho que isso por si só já demonstra a questão de prioridade. A primeira coisa que fiz foi quebrar todos os banheiros, adaptar para deficientes físicos e colocar as portas que passassem as cadeiras de rodas, acho que isso é o básico."

E depois de todo esse caminho, uma última faceta cruel: o funcionamento da Justiça. A primeira audiência sobre o caso aconteceu em julho, quase dois anos depois do primeiro boletim de ocorrência. A criança foi ouvida mais uma vez, e na presença do acusado de cometer o abuso. Além disso, o promotor que fez a denúncia não estava presente, sendo substituído por outro que nunca teve contato com a família.

Segundo o IBGE, 46 milhões de brasileiros apresentam alguma deficiência, sendo que 7,5% têm até 14 anos. São quase três milhões e meio de crianças e jovens que precisam ser olhados em suas necessidades para não ficarem expostos à violência. Há um longo caminho a percorrer, e como a mãe que fala nesta matéria, registramos: é preciso ir até o fim em busca de proteção para as crianças desse país.

De São Paulo, Daniele Lessa Soares

A série especial teve produção de Lucélia Cristina e Cristiane Vale, edição e coordenação de Daniele Lessa Soares e trabalhos técnicos de Nilton Gomes. As trilhas sonoras são de Eurípedes Martins.

A abordagem em profundidade de temas relacionados ao dia a dia da sociedade e do Congresso Nacional.

De segunda a sexta, às 3h, 7h20 e 23h