Rádio Câmara

Reportagem Especial

A função da dor e diferenças de percepção (6'54'')

31/01/2011 - 00h00

  • A função da dor e diferenças de percepção (6'54'')

Imagine como seria se as pessoas não sentissem dor? Seria o mundo ideal? Seria, se estivéssemos falando de dores emocionais: um mundo sem perdas, sem mortes, sem decepções. Mas, sem dor física, a vida humana estaria, na verdade, ameaçada.

Se você encosta numa agulha e espeta seu dedo, essa informação vai chegar ao seu cérebro. E ele vai desencadear um mecanismo de supressão de dor com dois resultados em vista: primeiro, que você tire a mão e, segundo, que sejam liberadas substâncias internas analgésicas, as endorfinas. A dor serve, portanto, para o ser humano manter sua integridade.

Uma condição bastante rara, em que a criança nasce sem a capacidade de perceber a dor pode, até mesmo, comprometer sua expectativa de vida. É a analgesia ou anestesia congênita, como explica o médico e coordenador científico da ONG Aliviador, João Augusto Figueiró.

"Dificilmente essas crianças sobrevivem mais de dez anos. Porque elas não só se machucam com muita frequência, como também se automutilam. Também, por exemplo, a pessoa mastiga a própria bochecha, lesa e não percebe que está se machucando. E também a questão das doenças: a criança tem uma apendicite, uma pneumonia, uma infecção, alguma outra doença, mas ela não percebe, não tem o sinal de alerta. Isso leva que as doenças nessas crianças sejam sempre muito mais graves e com consequências muito sérias."

O médico explica que a ausência do mecanismo de percepção dolorosa ocorre também em outras doenças, como a hanseníase e a diabetes.

Mesmo naquele simples exemplo da agulha, a situação de pacientes com essas doenças pode se complicar, pois eles podem nem se dar conta de que foram espetados. Um ferimento assim pode ser uma porta de entrada para infecções, e o paciente pode perder um membro ou mesmo morrer.

João Augusto explica que, no caso da hanseníase e da diabetes, o paciente precisa de cuidados especiais, como sapatos que não lesem os pés e atenção com a temperatura da água de imersões.

Olindina Batista, diabética, teve perda de sensibilidade no pé direito e conta como isso afeta sua rotina.

"Quase não faço unha mais. No pé, nem faço unha, só pinto. E uso sapatos adequados, que são caros também, para diabetes, para proteger o pé. Não ando com sandália aberta como todo mundo. (...) Já bati o dedão do pé e só vi quando acabei de tomar banho. Bati o dedão do pé na porta, só que fui ver só quando olhei para baixo e vi o sangue, porque eu não senti."

Agora, se existem pessoas que não sentem dor, podemos supor que existem pessoas que sentem mais ou menos dor do que outras? O médico João Augusto explica que a percepção de estímulos dolorosos varia muito de indivíduo pra indivíduo e depende de diversos fatores.

"Isso envolve desde questões étnicas até genéticas e questões relativas ao próprio desenvolvimento do indivíduo na sua infância, os significados, as interpretações, as atribuições de importância que cada um de nós dá aos eventos, aos acontecimentos da sua vida, incluindo os estímulos dolorosos."

Até mesmo a cultura pode interferir na percepção dolorosa. Segundo o médico João Augusto, quadros agudos como apendicite e infarto podem não se manifestar com dor em idosos. Isso porque haveria uma visão cultural de que é normal ter dor quando se envelhece. Então, explica o médico, os idosos tendem a se queixar menos das dores e eventualmente podem deixar de percebê-las.

A forma de perceber a dor parece variar também entre homens e mulheres. Segundo a enfermeira Eliseth Leão, da Sociedade Brasileira para o Estudo da Dor, a mulher parece ter recursos de enfrentamento mais desenvolvidos do que os dos homens.

"A gente brinca quando o marido está doente, ele parece um bebê. E a mulher vai trabalhar com cólica menstrual. Ela vai trabalhar, então, ela reage de uma forma de enfrentar mais a dor, às vezes, mais do que o homem."

Segundo Eliseth, estudos mostram que as mulheres sentem mais dor do que os homens, principalmente por fatores hormonais. Mas, de acordo com a enfermeira, a crença de que as mulheres são mais resistentes à dor parece fazer também com que elas sejam menos medicadas.

"Estudos mostram que os médicos medicam mais fortemente os homens quando sentem dor do que as mulheres. Há uma discriminação no sentido de elas receberem menos analgésicos. Então é muito triste, se a gente for pensar, porque além de ela sentir mais dor, ela é menos medicada."

O homem, por sua vez, diz Eliseth, demonstra mais resistência quando estabelece uma relação heroica com a dor. Ela cita como exemplo pessoas que se ferem em guerra e continuam lutando, por entender que aquele é um ato de heroísmo.

As emoções associadas à dor, portanto, contribuem para um melhor enfrentamento. O entusiasmo com a possibilidade de um novo filho, por exemplo, pode suplantar, na mente da mulher, a memória da experiência dolorosa do primeiro parto.

Da mesma forma, explica o médico João Augusto, a memória de experiências dolorosas pode tornar a pessoa mais sensível a novas experiências que talvez nem sejam dolorosas.

O fato é que cada pessoa percebe a dor que sente de um modo próprio, peculiar. Isso porque não são apenas fatores físicos que compõem um quadro de dor.

A medicina já identificou e busca agora tratar também aspectos emocionais e mentais relacionados à dor, como você poderá acompanhar na próxima reportagem desta série.

De Brasília, Verônica Lima.

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