Direitos Humanos

Indígenas veem “institucionalização do genocídio” em projetos de lei sobre marco temporal

Texto só considera as áreas ocupadas por indígenas até 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição

16/05/2023 - 21:00  

Indígenas denunciaram nesta terça-feira(16), na Câmara dos Deputados, o aumento das pressões de setores econômicos para a aprovação de projetos de lei que consideram danosos aos povos tradicionais, às vésperas da decisão final do Supremo Tribunal Federal sobre os critérios para a demarcação de novos territórios.

O debate ocorreu em audiência pública conjunta das comissões de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável; e da Amazônia e dos Povos Originários. O principal alvo das críticas é o projeto de lei que transfere para o Legislativo a palavra final sobre demarcações e adota a tese do marco temporal, que só considera as áreas ocupadas por indígenas até 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal (PL 490/07).

O texto polêmico surgiu em 2007 e é analisado com outras 15 propostas semelhantes, as duas últimas apresentadas em abril e no início deste mês. Um requerimento com cerca de 260 assinaturas de deputados acaba de pedir urgência para a votação imediata das propostas no Plenário da Câmara (REQ 1526/23).

Myke Sena / Câmara dos Deputados
Audiência Pública - Efeitos do PL 490/07 e do marco temporal para os povos indígenas.
Principal alvo das críticas dos participantes é o PL 490/07

Priscila Terena, assessora jurídica do Conselho do Povo Terena, citou 156 terras, oito etnias e mais de 80 mil indígenas impactados, em caso de aprovação desses textos. “A aprovação é a declaração do nosso extermínio e o início da institucionalização do nosso genocídio”, disse.

Presidente da Comissão da Amazônia e coordenadora da Frente Parlamentar em Defesa dos Povos Indígenas, a deputada Célia Xakriabá (Psol-MG) citou outros danos que identificou nas propostas. “Trata de transformar o marco temporal em lei, com o objetivo de inviabilizar a demarcação dos territórios indígenas; permite a construção de rodovias, hidrelétricas e outras obras em terras indígenas sem consulta livre, prévia e informada aos povos afetados, facilitando a grilagem em terras indígenas”, apontou.

A deputada apresentou requerimento para que as propostas, já prontas para votação no Plenário da Câmara, sejam redistribuídas para uma análise prévia da Comissão da Amazônia e dos Povos Originários, recentemente criada (REQ 1495/23).

Segurança jurídica x direitos garantidos
Principal autor do requerimento para votação imediata, o deputado Zé Trovão (PL-SC) disse que a intenção é buscar segurança jurídica e estabilidade das atividades produtivas nas áreas rurais. “Parece que essa discussão se tornou uma guerra, mas não é. Nós queremos dar aos povos indígenas e também aos produtores rurais tranquilidade nos campos, porque também os produtores rurais estão desesperados. Terras que são ocupadas por produtores há mais de 50 anos e que foram compradas serão tomadas deles”, afirmou.

Advogados das entidades indígenas Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme) apontaram inconstitucionalidade nas propostas em análise na Câmara.

Ex-deputada federal, a presidente da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Joênia Wapichana, denunciou riscos a direitos fundamentais previstos na Constituição. “É uma tentativa de inverter os direitos constitucionais que são bastante claros, estão no artigo 231 e garantem aos povos indígenas os seus direitos originários imprescritíveis, indisponíveis e inalienáveis. Esses são princípios fundamentais que tornam o artigo 231 cláusula pétrea”, disse.

Liderança do povo Xokleng, Brasílio Pripá discursou contra o marco temporal: “O direito da comunidade indígena não começou em 1988. Nós estamos aqui há mais de 500 anos em cima dessa terra.”

O deputado Ivan Valente (Psol-SP) avalia que a atual pressão da bancada do agronegócio está ligada à futura decisão do STF sobre os critérios constitucionais para a demarcação de terras indígenas. A retomada do julgamento, interrompido em 2021, está marcada para 7 de junho. A partir de um processo movido contra o povo Xokleng, de Santa Catarina, a Corte decidirá, com repercussão geral, se prevalece a tese do marco temporal de 5 de outubro de 1988 ou o direito originário dos indígenas combinado com a tradicionalidade na ocupação de suas terras. Essa última tese é defendida pelo governo Lula, que anunciou, em abril, seis novas terras indígenas homologadas, após cinco anos de paralisação nos governos anteriores.

Para o secretário-executivo do Ministério dos Povos Indígenas, Eloy Terena, a Constituição já traz os critérios corretos para as demarcações. “A tradicionalidade é a forma como cada povo se relaciona com o seu território. Isso não tem nada a ver com o tempo, mas tem a ver com o modo de ocupação, o modo de relação de cada povo indígena com o seu território. É por isso que a nossa orientação é concluir a demarcação das terras indígenas que estão pendentes”, disse.

O coordenador do Centro de Trabalho Indigenista (CTI), Jaime Siqueira, informou que, em média, os processos de demarcação têm durado 20 anos no Brasil. Ele também destacou a correção dos estudos técnicos e antropológicos que fundamentam a delimitação das áreas indígenas.

Reportagem -  José Carlos Oliveira
Edição - Ana Chalub

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