Reportagem Especial

Reforma psiquiátrica: histórico e ameaças

27/06/2016 - 09h01

  • Reforma psiquiátrica: histórico e ameaças (bloco 1)

  • Reforma psiquiátrica: louco ou normal? (bloco 2)

  • Reforma psiquiátrica: suporte à família (bloco 3)

  • Reforma psiquiátrica: manicômios judiciários (bloco 4)

  • Reforma psiquiátrica: dependentes químicos (bloco 5)

Música: “Ninguém há de retroceder nossa liberdade”

Este é o samba-enredo de 2016 da Escola de Samba “Liberdade Ainda que Tam Tam”, que desfila pelas ruas de Belo Horizonte todo 18 de maio desde 1997. O desfile reúne profissionais de saúde, pessoas com transtorno mental e seus familiares para comemorar o Dia Nacional da Luta Antimanicomial. Neste ano, o enredo se inspirou no poeta Mário Quintana para trouxar o tema “Eles passarão, nós passarinho”, articulando aí a essência da reforma psiquiátrica, que é o tratamento em liberdade, com as ameaças que a saúde mental enfrenta neste momento de instabilidade política nacional.

Na saúde mental, a crise política se instalou em dezembro de 2015, com a nomeação de Valencius Wurch Duarte Filho para a Coordenação Nacional de Saúde Mental do Ministério da Saúde. Diversas entidades do movimento antimanicomial assinaram nota pública contra a nomeação, pois o médico havia sido diretor-técnico do maior hospital psiquiátrico privado da América Latina, a Casa de Saúde dr. Eiras de Paracambi, no Rio de Janeiro. Segundo a nota, foram constatadas graves violações de direitos humanos no hospital, como prática sistemática de eletrochoques, ausência de roupas, alimentação insuficiente e de má qualidade e internações de longa permanência. O hospital foi fechado em 2012.

Na Câmara dos Deputados, também houve reação ao nome de Valencius, com o lançamento da Frente Parlamentar em Defesa da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial. A coordenadora da Frente, deputada Erika Kokay, do PT do Distrito Federal, explica o que representou a indicação de um médico com experiência à frente de hospital psiquiátrico para a coordenação de saúde mental:

"Um dos holocaustos que fazem parte da história do povo brasileiro são os hospitais psiquiátricos. Você tem hospitais como esse de Barbacena que, se estima, tenha assassinado 60 mil pessoas ou mais. (...) São os absurdos que acontecem. Mesmo em Sorocaba, que tem um Termo de Ajustamento de Conduta lá, que tem uma perspectiva de fechar os hospitais psiquiátricos. E nós fomos a um onde tinha um circo de horrores. Tinham pessoas há 50 anos ali. (...) Nós vimos que alguns desses hospitais, que foram vendidos e transformados em outras construções, nós temos notícia de que uma dessas construções, ao fazer escavação, se encontraram ossadas. Isso é holocausto."

Valencius foi exonerado em maio, mas até o fechamento desta reportagem, o cargo permanecia vago e, por isso, o Ministério da Saúde não nos concedeu entrevista.

A luta por mudança no modelo de tratamento dos doentes mentais começa nos anos 50. Os horrores da guerra haviam despertado a preocupação com a defesa dos direitos humanos, e isso levou ao questionamento do modelo manicomial, em que as pessoas passavam a vida internadas em hospitais, com pouco ou nenhum tratamento, longe de casa, da família e da comunidade. Quem conta essa história é o psiquiatra e atual diretor da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas, Leon Garcia. Até 2013, ele trabalhou na Coordenação Nacional de Saúde Mental:

"Há nos anos 70 um grande crescimento de manicômios privados, ligados simplesmente a uma lógica de ganhar dinheiro em cima do sofrimento dos outros. E, no fim dos anos 70 pro início dos 80, começa a se organizar isso que a gente chama de movimento da luta antimanicomial. Trabalhadores do campo da saúde mental junto com usuários, pacientes e familiares pedindo um novo modelo. (...) Não é só olhar os sintomas, mas principalmente que tipo de vida as pessoas levam. Quanto mais próximas da comunidade e mais inseridas na escola, no trabalho, na família, no esporte, no lazer, na cultura, melhor."

A luta antimanicomial chega ao Congresso em 1989, com a apresentação de um projeto de lei pelo então deputado Paulo Delgado. Após 12 anos de discussão, o projeto se tornou, em 2001, a Lei 10.216, que instituiu os princípios da reforma psiquiátrica brasileira. Em resumo, a reforma busca o fechamento de hospitais psiquiátricos e sua substituição por serviços prestados de tal forma que os pacientes possam se tratar em casa, junto da família e inseridos na comunidade. Leon Garcia apresenta os serviços que compõem hoje a rede de atenção psicossocial do SUS:

"Os caps sempre têm um espaço de cuidado durante o dia, que passa desde a consulta com o médico psiquiatra, até atendimentos por parte de psicólogos, terapeutas ocupacionais, assistentes sociais, grupos voltados para famílias, oficinas, atividades na comunidade, ajudar essas pessoas a manter ou recuperar seus vínculos com a comunidade. Para apoiar os caps, alguns contam com leitos de 24 horas. Se for necessário mais cuidado médico, irá para um hospital geral com leitos psiquiátricos, que é outro ponto de atenção. E, para aqueles que vieram moradores de hospitais psiquiátricos, existem essas residências terapêuticas, que são casas com equipe de cuidadores, com maior ou menor intensidade dependendo do nível de cuidado exigido pelas pessoas que lá estão morando."

Ao longo dos 15 anos desde a aprovação da lei, a substituição de hospitais psiquiátricos vinha progredindo bem, segundo os movimentos sociais. Mas possíveis mudanças no financiamento do Sistema Único de Saúde como um todo são vistas com receio. Em audiência realizada no início de junho na Câmara dos Deputados, o representante da Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial, Vínicius Suares, falou sobre as preocupações do movimento com as mudanças propostas pelo governo interino:

"Há claramente uma previsão do governo sinalizada de voltar a ter internações psiquiátricas, de financiamento excessivo de comunidades terapêuticas, que são dispositivos asilares, e acima de tudo a defesa do SUS. Não é possível fazer reforma psiquiátrica sem ter o SUS, sem ter seguridade social. A gente reivindica, sim, que o SUS seja garantido. A desvinculação das receitas da União representa uma perda imensa de recursos que financiariam a saúde. A gente reivindica que o SUS continue tendo financiado necessário para que ele se efetive e que a política de saúde mental permaneça na mesma direção."

O deputado Lincoln Portela, do PRB de Minas Gerais, participou da audiência pública e avalia que não há ameaças de retrocesso na política de saúde mental:

“Para mim não existe ameaça, talvez essa mudança traumática que o Brasil passou por ela possa deixar algumas pessoas que trabalham na área uma certa preocupação, mas eu penso que os avanços devem prosseguir, claro, que sem extremos.”

Poema: Zilândia

Essa que você acabou de ouvir é a poetisa Zilândia, que eu conheci na comemoração do 18 de maio em Belo Horizonte. Moradora de Ipatinga, Zilândia tem 40 anos e um diagnóstico de esquizofrenia. Mora sozinha, nos fundos da casa do pai, e a filha, de três anos, mora ao lado, aos cuidados da irmã. A poetisa frequenta a Associação "Loucos por Você", ONG criada em 1999 por usuários, familiares e profissionais do setor para cobrar da Prefeitura a estruturação dos serviços de saúde mental. Zilândia, que está na "Loucos por Você" desde a fundação, fala da sobre o tratamento com e sem internação.

"Esse sistema prisional, como cadeia, presídio, manicômio, são lugares onde tem cadeado, são lugares onde tem eletrochoque e muitas outras formas de tortura. Tem uma pessoa lá que manda lá, se você não fizer, é obrigatório, você tem que fazer, você tem que trabalhar lá dentro. E nossa forma não. A nossa forma é de lutar a favor da liberdade, você tem direito de ir e de vir, como cidadão normal como todo outro tem, independente de ser negro, raça, credo, idade, religião. Eu tive surtos na associação, mas eu tive acompanhamento deles, eles me deram remédio, cuidaram de mim, me levaram para consultas, conversaram comigo, e, assim que eu melhorava, voltava a escrever minhas poesias."

Em BH, eu conheci também o Marconi, a Arminda, o Leco e o Jefferson. Todos muito solícitos e interessados em defender a opção pelo tratamento fora dos hospitais psiquiátricos. Não é bom ficar trancado não, me disse o Marconi. Não somos presos; somos apenas pacientes:

“Liberdade não se vende. Louco não se prende.”

Especialistas questionam o uso de remédios para tratar aborrecimentos, comportamentos e tristezas naturais da vida, como o luto e a desobediência. Confira, no segundo capítulo da reportagem especial.

Edição – Mauro Ceccherini
Reportagem – Verônica Lima
Produção – Lucélia Cristina e Christiane Baker
Trabalhos Técnicos – João Vicente de Oliveira

A abordagem em profundidade de temas relacionados ao dia a dia da sociedade e do Congresso Nacional.

Sábado e domingo às 8h30, 13h e 19h30. E nas edições do programa Câmara é Notícia. Mande sua sugestão pelo WhatsApp: (61) 99978.9080.

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