Reportagem Especial
Especial Quilombolas 2 - Conflitos envolvendo demarcação de terras quilombolas - ( 08' 03" )
18/06/2007 - 00h00
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Especial Quilombolas 2 - Conflitos envolvendo demarcação de terras quilombolas - ( 08' 03" )
NA SEGUNDA REPORTAGEM ESPECIAL SOBRE OS QUILOMBOLAS QUE A RÁDIO CÂMARA TRANSMITE ATÉ SEXTA-FEIRA, NESTE HORÁRIO, O REPÓRTER JOSÉ CARLOS OLIVEIRA APRESENTA OS CONFLITOS ENVOLVENDO POLÍTICOS, PROPRIETÁRIOS DE TERRA E GOVERNO EM TORNO DA DEMARCAÇÃO E DA POSSE DE ÁREAS REMANESCENTES DE QUILOMBO.
TRILHA (só instrumental): "Funeral de um trabalhador" ("Morte e Vida Severina")
A Constituição de 1988 garantiu aos remanescentes das comunidades de quilombo o direito de propriedade definitiva das terras ocupadas por seus antepassados. Por força da lei, as terras quilombolas são consideradas "Território Cultural Afro-Brasileiro" e devem receber o apoio do Poder Público para a sua preservação. O procedimento para identificação, reconhecimento, demarcação e titulação das terras foi definido num decreto, assinado pelo presidente Lula em 2003. A norma, no entanto, é alvo de críticas e até de questionamento de constitucionalidade no Supremo Tribunal Federal.
Um dos pontos mais polêmicos do decreto permite que as comunidades postulem o reconhecimento como quilombolas por meio de uma simples autodeclaração por escrito. Basta essa autodefinição como quilombola para que a comunidade já receba uma certidão da Fundação Palmares, vinculada ao Ministério da Cultura. Depois, é preciso aguardar vários procedimentos do Incra para a conclusão do processo. O mais complicado é a desapropriação das terras, que, invariavelmente, gera tensos conflitos agrários.
TRILHA (só instrumental): "Funeral de um trabalhador" ("Morte e Vida Severina"
Motivado por matérias da TV Globo sobre irregularidades na concessão de terras para os quilombolas, o deputado Luiz Paulo Vellozo Lucas, do PSDB do Espírito Santo, pediu que o Ministério Público investigasse esses processos. O deputado deixa claro que é favorável ao direito dos verdadeiros remanescentes de quilombos manterem suas áreas, mas argumenta que os critérios adotados pelo atual governo são injustos com os proprietários de terra.
"Essa é uma ação confusa, sem respaldo histórico-antropológico por parte do Incra. É uma demarcação arbitrária. É absolutamente impossível que, com base numa autodeclaração, faça-se uma demarcação de terras produtivas há muitas gerações, sendo utilizadas por pequenos proprietários rurais, para serem desapropriadas e distribuídas aos autodeclarados descendentes dos quilombolas."
Vellozo Lucas cita o exemplo do Espírito Santo, onde, segundo ele, existiu apenas um quilombo ao longo da história. O deputado reclama que, apesar desse fato, o Incra já demarcou 25 terras quilombolas no estado, prejudicando cerca de 400 pequenos proprietários.
Já a ministra da Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial, Matilde Ribeiro, argumenta que o conflito de interesses em torno das terras é natural e garante que todo o processo, desde a identificação até a titulação das áreas quilombolas, está correto.
"Não tem como ter regularização de quilombo sem viver conflito. O conflito está no entendimento da sociedade de quem é a propriedade da terra. A lei diz que os quilombolas que vivem na terra a partir de uma constatação antropológica, sociológica e de um levantamento feito pelo governo federal, que comprove que aquela comunidade é quilombola, a terra passa a pertencer aos quilombos. E é assim que nós temos trabalhado."
O problema é realmente complexo e polêmico. Mas, para a professora da UnB, Glória Moura, que escreveu a história do Quilombo dos kalungas, em Goiás, a questão fundiária tem de ser vista por um ângulo diferencial, quando se analisa a tradição quilombola.
"A terra, para o quilombola, tem um outro valor. E isso pode ser uma das dificuldades. Não é um valor de mercado. Essa terra tem significado para eles. Os pais, avós, bisavós estavam lá e eles estão lá até hoje para fazer as festas, para plantar, para poder comer daquela terra. Então, é um valor diferente."
Os kalungas, que habitam a região da Chapada dos Veadeiros há quase 300 anos, já cumpriram todos os passos para a regularização de suas terras, mas aguardam há mais de 20 anos pelo título de posse definitiva da área. A comunidade vive basicamente do plantio de arroz, feijão, milho, batata doce, abóbora, banana e, principalmente, mandioca, cultivados em forma de subsistência. No entanto, muitas das famílias não têm espaço suficiente para produzir e são obrigadas a recorrer a benefícios governamentais, como as cestas básicas e o programa Bolsa Família. O líder dos kalungas, Cirilo Rosa, não hesita em apontar a conquista definitiva da terra como a principal reivindicação para seu povo cultivar a cultura, ganhar auto-estima e conquistar dignidade e cidadania plenas.
"Quem não tiver direito, tem que desocupar. Porque a terra é nossa. Nossas áreas produtivas estão todas nas mãos de uns gatos pingados que não produzem. E ainda põem um empregado lá, ganhando um salarinho de passar fome para não deixar a gente produzir, tirando nós para não trabalhar na terra. Nós sobrevivemos de plantação, mas a terra boa está nas mãos dos latifundiários. Estamos dependendo de cesta por causa disso. Se liberarem nossas terras para nós, nós não vamos depender de cesta, não. Nós vamos ajudar a matar a fome do povo da cidade, igual nós ajudávamos antes."
MÚSICA: "Funeral de um trabalhador" (de João Cabral de Melo Neto e Chico Buarque)
"É de bom tamanho, nem largo nem fundo,
É a parte que te cabe deste latifúndio
É a parte que te cabe deste latifúndio."
No Quilombo de Palmeiras dos Negros, em Alagoas, a situação é um pouco mais tranqüila, até porque a comunidade já tem suas terras regularizadas. Mesmo assim, o líder local, José Santos, define a área quilombola como um "curral" cercado por fazendeiros. Segundo ele, a aparente tranqüilidade também é resultado do temor pelas conseqüências negativas dos conflitos agrários.
"Não há conflito, até porque o pessoal aqui da comunidade não gosta de conflito. E a gente vê os exemplos dos fatos que ocorrem em nosso país, como o que ocorreu com a nossa saudosa irmã Dorothy, que, por lutar pelo bem do povo daquela região, veio a ser morta por fazendeiros. E aí, o pessoal vendo isso - isso causou uma grande repercussão - o pessoal tem medo."
José Santos se refere à missionária norte-americana Dorothy Stang, assassinada em Anapu, no Pará, em 2005, devido a sua atuação em movimentos sociais e em projetos de desenvolvimento sustentável junto aos trabalhadores rurais da região amazônica. Por coincidência, vem do Pará a primeira titulação oficial de terras quilombolas, registrada em 1995, no Quilombo de Boa Vista, em Oriximiná. Foi uma experiência ímpar, não apenas pelo pioneirismo, mas também pelo fato de os quilombolas da região se reunirem em torno da Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Município de Oriximiná em busca de uma conquista coletiva, como ressalta um dos coordenadores do grupo, Silvano Santos.
"A nossa experiência foi diferente porque foi uma titulação de terra de forma coletiva: o título vem com uma cláusula de que a terra não pode ser vendida. O título da terra está em nome da associação e os associados são os proprietários das áreas."
MÚSICA: "Funeral de um trabalhador" (de João Cabral de Melo Neto e Chico Buarque)
"É a parte que cabe deste latifúndio
É a terra que querias ver dividida"
Atualmente, o governo federal reconhece a existência de 3.400 comunidades quilombolas em todo o país, mas o processo de regularização das áreas é lento. Desde 2003, quando surgiu o polêmico decreto presidencial permitindo a certificação das comunidades mediante a autodefinição como quilombola, apenas 31 receberam seus títulos de posse da terra. Cerca de 400 estão em processo de regularização, segundo a Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial. A meta do governo federal é beneficiar 22 mil famílias de 900 comunidades até o próximo ano.
De Brasília José Carlos Oliveira
LONGE DAS FACILIDADES DO MUNDO MODERNO, OS QUILOMBOLAS VIVEM O DRAMA DIÁRIO DO POUCO ACESSO AOS SERVIÇOS DE SAÚDE, EDUCAÇÃO E SANEAMENTO BÁSICO. A TERCEIRA REPORTAGEM ESPECIAL VAI MOSTRAR ESSA SITUAÇÃO DE CARÊNCIA E AS AÇÕES DO GOVERNO E DO CONGRESSO NACIONAL PARA REVERTÊ-LA. ATÉ AMANHÃ.