Leia a íntegra do discurso do presidente da Câmara sobre o AI-5

11/12/2008 - 12:40  

"A realização deste ato ocorre em defesa dos valores democráticos e em repúdio ao Ato Institucional nº 5, baixado pela ditadura militar no sombrio dia 13 de dezembro de 1968, porque certamente compartilhamos a compreensão de que a memória dos crimes do passado nos ajuda a evitar que se repitam.

Recorro às palavras de uma pensadora judia, alemã e americana, Hannah Arendt, que tentou compreender a banalização do mal: "Compreender não significa negar o ultrajante, subtrair o inaudito do que tem precedentes, ou explicar fenômenos por meio de analogias e generalizações tais que se deixa de sentir o impacto da realidade e o choque da experiência. Significa antes examinar e suportar conscientemente o fardo que os acontecimentos colocaram sobre nós – sem negar sua existência nem vergar ao seu peso, como se tudo o que de fato ocorreu não pudesse ter acontecido de outro forma. Compreender significa, encarar a realidade, espontânea e atentamente, e resistir a ela – qualquer que seja, venha a ser ou possa ter sido".

Compreender o regime a ditadura militar passa necessariamente por entender a lógica da guerra fria existente em todo o mundo, e superar o equívoco de que reivindicações ou lutas sociais significavam ameaça comunista, que sempre serviu como pretexto.

O problema real é que muitos brasileiros, que se apresentavam como liberais, e que, seguramente, foram perseguidos pela ditadura Vargas, sempre foram autoritários durante a velha República e assimilaram o golpismo presente em Vargas, mas não assimilaram suas virtudes.

A partir da redemocratização de 1945, se especializaram em contestar os resultados de eleições cada vez mais participativas. Contestaram a eleição de Vargas e de JK. Alegavam que os eleitos não haviam obtido mais de 50% dos votos. Coisa que a Constituição não exigia. O fato de o Brigadeiro Eduardo Gomes ter sido derrotado duas vezes levou a UDN, dita liberal, a rejeitar regularmente os resultados das urnas.

JK exerceu seu mandato dentro dos marcos da legalidade, mas mesmo assim foi objeto de tentativas de golpes que contaram com o apoio da UDN. Carlos Lacerda, um dos principais líderes daquele partido, esteve embarcado no cruzador Tamandaré, da Marinha de Guerra, junto com Carlos Luz, então presidente desta Câmara dos Deputados, para impedir a posse do novo presidente. Além disso, ao longo de seu mandato, JK foi objeto de duas rebeliões na FAB, uma em Jacareacanga (PA), outra em Aragarças (GO), as duas contando com simpatias na UDN.

A raiz remota do golpe de 1964 está em 1954. Os "liberais" da UDN não suportavam Vargas. E tinham articulado golpistas militares, sobretudo na FAB e na Marinha. Mas Getúlio Vargas, com um tiro no próprio peito, desarticulou este projeto. Massas populares foram às ruas e fortaleceram as forças democráticas e os legalistas das forças armadas. O Marechal Lott pode assim garantir a posse de JK.

A vitória de Jânio Quadros foi um acontecimento típico de países que não têm tradição de instituições partidárias sólidas.

Jango foi eleito vice-presidente numa eleição em que o voto no presidente era desvinculado do voto no vice-presidente. Com a renúncia de Jânio Quadros, em agosto de 1961, houve a tentativa de impedir a posse do vice. Mas não estavam completamente preparados para a operação, e o III Exército, do Rio Grande Sul, aderiu à campanha da legalidade lançada pelo governador Leonel Brizola.

Numa negociação conduzida por Tancredo Neves, Jango aceitou assumir o governo, limitado, no entanto, por um sistema parlamentarista. Tancredo foi o primeiro chefe de gabinete.

Enquanto Jango articulava um plebiscito que revogaria o parlamentarismo, alguns militares e políticos de direita preparavam o golpe.

Falava-se, demagogicamente, no perigo comunista. Jango nunca teve nada a ver com o comunismo e os movimentos sociais que então floresceram eram incipientes se comparados com os de hoje. No período, enquanto aparecia alguma movimentação popular, a direita se financiava junto a instituições americanas para disputar eleições.

O único episódio que de alguma forma pode caracterizar uma ameaça ao Estado foi o desastrado comparecimento do Presidente da República numa manifestação de praças e sub-oficiais no Automóvel Clube do Rio de Janeiro. Este gesto realmente forneceu pretexto para a quebra da disciplina e pode ter tirado os últimos apoios do presidente entre os oficiais das forças armadas, mas nem isso justifica uma ditadura de vinte anos.

Política e diplomaticamente isolado, Jango não tinha como resistir. Sua queda ocorreu quase sem resistência. Este fato mostra que a crueldade da repressão certamente não decorria da resistência de um inimigo já vencido, mas talvez de outras condicionantes.

A ditadura se instalou em 1964, mas se instalou de forma algo vacilante. Não censurava completamente a imprensa, permitia eleições regionais e só depois se arrependia, como nas derrotas em Minas e no Rio para oposicionistas moderados (Israel Pinheiro e Negrão de Lima). Foi esta primeira derrota eleitoral da ditadura que deu origem ao AI2, que impôs o bi-partidarismo.

Nesse ambiente sombrio alguns intelectuais conseguiam se movimentar. Carlos Heitor Cony, nas páginas do Correio da Manhã, desancava a ditadura. Antonio Calado e Tristão de Athayde também participavam deste esforço. Millor Fernandes, nas modestas quatro edições de sua revista PIF-PAF, bradava aos ventos: "se não fecharem esta revista terminaremos caindo numa democracia". Teve seu clamor atendido. A revista foi fechada.

Ênio Silveira, no comando da Editora Civilização Brasileira, fazia de tudo para manter viva a inteligência nacional, publicando livros inconvenientes e uma revista extremamente densa, mas que vendia. Cidadãos como este, que portava o perigoso vírus da liberdade, já davam conta até de fazer manifestação de rua em 1965 contra invasão americana da República Dominicana, em frente ao Hotel Gloria. Naturalmente todos foram presos.

Também algumas entidades da sociedade civil como a ABI e a CNBB não conciliaram com a ditadura. Denunciaram desde o primeiro momento os abusos do regime. Com relação à grande imprensa, é preciso registrar que parte dela foi protagonista do golpe e aplaudiu sua vitória. Posteriormente, assumiu a luta pela democracia.

A partir de 1966, os estudantes começaram a sair às ruas com suas reivindicações próprias, mas também em protesto contra a opressão.

Em 1967 Castelo Branco encerrou seu "mandato" com a promulgação da sua Constituição. Era uma obra de autoritarismo imposta a um Congresso submetido e expurgado de diversos opositores do regime, pois em 1964 já haviam sido cassados parlamentares como Juscelino Kubitschek, Leonel Brizola, Almino Afonso, Francisco Julião, Neiva Moreira, Plínio de Arruda Sampaio, dentre outros.

1968 foi um ano de mudanças no mundo inteiro. Em fevereiro, no distante Viet-Nam, começou a ofensiva do Tet (ano lunar vietnamita). Tropas do Viet-Nam do Norte e guerrilheiros do Viet-Cong lançaram uma ofensiva sem precedentes contra o ocupante americano. O General West Moreland, comandante supremo dos 500 mil soldados americanos que ocupavam aquele país, estava em Washington para comunicar ao Presidente Lydon Johson que a guerra no Viet-Nam ia acabar e que o Viet-Cong estava liquidado.

Na madrugada do dia da audiência de West Moreland com o Lydon Johnson, o presidente foi acordado por auxiliares que comunicaram que a própria embaixada dos Estados Unidos em Saigon tinha caído em poder dos viet-congs. Desolação na Casa Branca. Certamente West Morelando não tinha como explicar ao presidente como um viet-cong derrotado tinha sido capaz de desencadear uma ofensiva tão devastadora, atacando simultaneamente todas as cidades importantes e todas as bases americanas no Viet-Nam. O mundo ficou pasmo.

Em maio, Paris pegou fogo. Uma banal greve estudantil se transformou numa espécie de insurreição juvenil que atraiu também a classe operária que, passando por cima das burocracias sindicais, deflagrou uma greve geral sem precedentes. Do alto de suas barricadas os estudantes de Paris proclamavam: "L`imagination au pouvoir" (A imaginação no poder).

Nos Estados Unidos a luta dos negros por direitos civis e os protestos contra a intervenção militar americana no Viet-Nam conquistavam as ruas em manifestações multitudinárias. Martin Luther King, principal líder dos negros foi assassinado. Mas sua luta certamente não foi em vão. No próximo dia 20 de janeiro um negro assume a presidência dos Estados Unidos.

Na Tchecoslováquia, Alexander Dubchek abria o processo da primavera de Praga. Era uma tentativa de democratizar e humanizar o socialismo Tcheco. Este projeto foi massacrado pelas esteiras dos tanques russos. Mas em compensação o socialismo dito real faliu e a União Soviética e seu império desabaram a partir de 1989.

No Brasil este ano não foi diferente. O movimento estudantil já vinha fermentando desde 1966. A partir do assassinato do estudante Edson Luis, o movimento conquistou nova envergadura. Transformou-se no movimento de massas que passava a conquistar outros setores das classes médias. A repressão não cessou de crescer e de adotar métodos cada vez mais brutais. Nem por isso o movimento recuava.

Para o desespero da ditadura, na metade do ano, também a classe operária se colocou em movimento. Ocorreram greves operárias brutalmente reprimidas em Contagem e Osasco.

O AI-5 foi editado neste contexto. O ato foi em si uma excrescência jurídica para se sobrepor a outras excrescências jurídicas que já vinham sendo impostas pela ditadura, e teve o apoio de todos os civis presentes, à exceção de Pedro Aleixo, Vice-Presidente da República e liberal histórico da UDN. O testemunho é de Delfin Netto: "Naquela época do AI-5 havia muita tensão, mas no fundo era tudo teatro. Havia as passeatas, havia descontentamento militar, mas havia sobretudo teatro. Era um teatro para levar ao Ato. Aquela reunião foi pura encenação. O Costa e Silva de bobo não tinha nada. Ele sabia a posição do Pedro Aleixo e sabia que era inócua. Ele era muito esperto. Toda vez que ia fazer uma coisa dura chamava o Pedro Aleixo para se aconselhar e, depois, fazia o que queria. O discurso do Marcito não teve importância nenhuma. O que se preparava era uma ditadura mesmo. Tudo foi feito para levar àquilo".

Estabeleceu-se, portanto, a partir de 13 de dezembro de 1968, no Brasil, um clima de terror. Isso coincidiu com a retomada do crescimento econômico. A esquerda que havia rachado com o velho PCB não soube interpretar a situação. Achou que, como tinha obtido algum sucesso em mobilizar massas e 1968, podia abandonar este trabalho e lançar seus militantes numa luta armada contra a ditadura. Não deu certo. Com o refluxo das manifestações, estes militantes ficaram isolados e viraram presas fáceis de uma repressão cruel e desumana.

A Constituição de 1967, ilegítima em sua origem e autoritária no seu conteúdo, na prática foi revogada pelo AI-5 na triste tarde de 13 de dezembro de 1968. O Conselho de Segurança Nacional, convocado por Costa e Silva chegou à conclusão que os rigores da Constituição de 1967 não eram suficientes. De agora em diante era preciso soltar a tropa na rua, matar e prender.

O ato permitia ao Presidente colocar em recesso o Congresso Nacional, o que foi feito imediatamente em 13 de dezembro de 1968, sendo somente reaberto em outubro de 1969, para a eleição do General Médici. O Presidente também passava a ter plenos poderes ditatoriais para, dentre outros, intervir em estados-membros e municípios, cassar mandatos eletivos, suspender direitos políticos dos cidadãos por 10 anos, aplicar medidas de segurança, demitir ou aposentar juízes e outros funcionários públicos, suspender o habeas-corpus em crimes contra a segurança nacional, crimes políticos e a ordem econômica e financeira, legislar por decreto e decretar o estado de sítio. E os atos praticados com base em tais poderes eram excluídos da apreciação judicial.

Além disso, o AI-5 preparou o terreno para vários outros atos institucionais e medidas legais que se seguiram. O regime instaurado deu origem a mais de 12 atos institucionais, 59 atos complementares e 8 emendas constitucionais.

O AI-6, por exemplo, instaurado na esteira do AI-5, editado em 1º de fevereiro de 1969, reduziu de 16 para 11 o número de ministros do STF. Além dos três ministros cassados pouco antes em janeiro, os notáveis Hermes Lima, Evandro Lins e Silva e Victor Nunes Leal, foram aposentados também Antônio Carlos Lafayette de Andrada e Antônio Gonçalves de Oliveira. Os chamados "crimes contra a segurança nacional" passaram também a ser julgados pela Justiça Militar, ficando reduzidas as atribuições do Supremo.

Em janeiro e fevereiro de 1969, as cassações atingiram o próprio partido do governo: da lista de 33 punidos então divulgada, 11 parlamentares - entre os quais Rafael de Almeida Magalhães e Jorge Cury - pertenciam à Arena. Do MDB foram cassados, entre outros, os deputados Mário Covas, Aluísio Alves, Pedro Gondim e Cid Carvalho, e os senadores Mário Martins e Artur Virgílio. No início de maio de 1969, foram atingidos mais quatro senadores e 95 deputados dos dois partidos, tendo o MDB perdido 40% de seus representantes.

Levantamento do jornalista Gilson Caroni Filho aponta que 273 mandatos parlamentares foram suspensos pelo AI-5, sendo 162 estaduais e 111 federais. Até o final do governo Médici o AI-5 foi usado 579 vezes. Atingiu 145 funcionários públicos, 142 militares, 102 policiais e 28 funcionários do poder judiciário. No primeiro ano de sua execução, o AI-5 aposentou 219 professores universitários. Entre eles, faço referência a Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Octávio Ianni, Emília Viotti da Costa e José Arthur Gianotti.

Considerada apenas a relação de deputados federais punidos, abrangendo todo o período de cassações, entre 1964 e 1978, pode-se calcular, em números redondos, cerca de seis milhões de votos cassados.

O AI-5 inaugurou um dos períodos mais tenebrosos da vida pública nacional, que perdurou, infelizmente, por dez anos e dezoito dias, pois o ato só foi revogado no final do governo do presidente Ernesto Geisel (1974-1978), pela Emenda Constitucional nº 11, de dezembro de 1978. Se dependesse apenas de suas normas, o AI-5 teria duração ilimitada, já que, ao contrário dos outros atos institucionais, esse não tinha prazo de vigência.

No período em que vigorou instaurou uma cultura do medo, embora não tenha calado por completo as vozes que se opunham à ditadura, seja na luta social, seja na institucionalidade possível. Relembro aqui, como exemplo da resistência do Congresso Nacional, a figura do Deputado Lysâneas Maciel, cassado em 1977. Essa resistência, combatida com cassações e recessos forçados, seria fundamental para o processo de retomada da democracia.

A ditadura surfou no chamado milagre econômico buscando se legitimar, mas sem se importar com a questão da distribuição de renda e abusando da violência. De repente se depara com uma crise do petróleo, endividou o país e perdeu o controle da inflação. Os mais sensatos, começaram a organizar uma retirada em ordem. Geisel revoga o AI-5, Figueiredo concede uma anistia e consegue impedir que a grande campanha das Diretas Já alcance seus objetivos.

Com esta operação ele contribuiu para a eleição indireta de Tancredo Neves, embora quem assumisse tenha sido José Sarney.

Sras. e Srs.,
Independentemente de nossos percalços históricos, interessa aqui tirar lições. Alertar a todos para o valor universal da democracia, caminho fora do qual não há saída para a construção de uma sociedade livre, justa e fraterna.

Nosso processo para reconquistá-la foi doloroso e árduo, um aprendizado que temos a obrigação de sempre relembrar, para o seu próprio fortalecimento e aprimoramento. Esse ato tem esse sentido de recuperação da história, preservação da memória, homenagem aos que foram perseguidos e tiveram seus direitos políticos cassados e, do mesmo modo, tem um sentido de advertência para a presente e futuras gerações.

Muito obrigado."

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