Deputada Carlota Pereira de Queirós no Plenário da Assembleia Constituinte de 1934
RICARDO ORIÁ
Consultor legislativo da Câmara dos Deputados
Em 13 de março de 1934, uma voz feminina se fez ouvir, pela primeira vez, no Plenário do Palácio Tiradentes, sede da Câmara dos Deputados, na então capital federal, o Rio de Janeiro. Tratava-se de Carlota Pereira de Queirós, médica paulista e primeira deputada federal do Brasil, eleita pelo voto popular.
Nascida na capital de São Paulo em 13 de fevereiro de 1892, Carlota era filha de José Pereira de Queirós e de Maria de Azevedo Pereira de Queirós. Pertencia, portanto, a uma família tradicional das elites locais, sendo seu avô paterno um rico proprietário de terras em Jundiaí, membro do Partido Republicano Paulista e um dos fundadores do jornal A Província de São Paulo (atualmente, O Estado de S. Paulo).
Carlota fez seus estudos iniciais na então Escola Normal da Praça da República e, em 1909, recebeu o diploma de professora. Convidada pelo diretor da escola, passou a trabalhar nesse estabelecimento de ensino como inspetora primária. Em 1912, tornou-se professora do jardim de infância, cargo que manteve por dez anos. Até o início da década de 1920, Carlota tinha acumulado várias atividades ligadas à educação.
Desiludida com o magistério, ela deu uma guinada em sua vida pessoal e profissional ao ingressar na Faculdade de Medicina de São Paulo, em 1920. Em 1923, decidiu trocar de instituição e se inscreveu na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, formando-se em 1926, com a tese “Estudos sobre o câncer”. Recebeu por seus estudos na área o Prêmio Miguel Couto. Nesse mesmo ano, assumiu a direção do laboratório da clínica pediátrica da Faculdade de Medicina de São Paulo. Em 1928, comissionada pelo governo paulista, viajou à Suíça, onde estudou sobre dietética infantil.
Sua participação na política se deu a partir da Revolução Constitucionalista de 1932, quando São Paulo lutou contra a excessiva concentração de poderes nas mãos de Getúlio Vargas e exigiu um novo ordenamento constitucional para o País. Com outras 700 mulheres, Carlota organizou o Departamento de Assistência aos Feridos (DAF), subordinado ao Departamento de Assistência à População Civil.
A Revolução de 32 acabou sendo derrotada pelo governo central, mas foram convocadas eleições no ano seguinte para a elaboração de um novo texto constitucional. O nome de Carlota surgiu por recomendação da Associação Comercial, respaldado pela Associação Cívica Feminina e pela Federação dos Voluntários, grupo de oficiais e suboficiais paulistas que haviam participado do movimento revolucionário.
Contando com o apoio da elite local e do segmento feminino, Carlota Pereira de Queirós foi eleita com 5.311 votos no primeiro turno e 176.916 no segundo, tornando-se a primeira deputada federal da história nacional.
Durante o processo constituinte, Carlota participou dos trabalhos da Comissão de Educação e Saúde, na qual elaborou o primeiro projeto sobre a criação de serviços sociais no País. Sua iniciativa colaborou para o estabelecimento da obrigatoriedade de verbas destinadas à assistência social, possibilitando, assim, a construção da Casa do Jornaleiro e do Laboratório de Biologia Infantil.
Já promulgada a nova Constituição, Carlota foi reeleita em 1934 na legenda do Partido Constitucionalista de São Paulo para uma das 34 cadeiras da bancada paulista na Câmara dos Deputados. Nessa eleição, ela recebeu 1.899 votos no primeiro turno e foi a segunda mais votada no segundo turno, com 228.190 votos.
Divergências com Bertha Lutz
Importante registrar que a segunda mulher a ocupar um assento no Parlamento brasileiro foi Bertha Lutz, em 1936. Bertha era paulista e de ascendência europeia: sua mãe, Amy Fowler Lutz, era inglesa; e seu pai, Adolfo Lutz, era brasileiro filho de suíços. Ela fez seus estudos secundários na Europa, onde entrou em contato com a campanha sufragista inglesa. Na Universidade de Paris, obteve o diploma de licenciada em ciências (especialização em biologia).
Com 24 anos de idade, Bertha tornou-se uma defensora incansável dos direitos da mulher no Brasil. Com outras ativistas, empenhou-se na luta pelo voto feminino e criou, em 1919, a Liga para a Emancipação Intelectual da Mulher, que foi o embrião da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino. Em 1934, candidatou-se à Câmara dos Deputados. Não foi eleita, mas alcançou a primeira suplência. Quase dois anos depois, tornou-se a segunda deputada federal do Brasil, após a morte do titular do cargo, Cândido Pereira.
Apesar de serem as únicas mulheres no Parlamento brasileiro à época, as duas deputadas não concordavam em muitos aspectos. Carlota posicionou-se contra a proposta de Bertha sobre a criação de um Departamento Nacional da Mulher, no contexto da Comissão Especial de Elaboração do Estatuto da Mulher. Segundo Carlota, o modelo burocrático sugerido para esse órgão acarretaria superposição de atribuições e competências com três ministérios da administração pública federal. Em seu lugar, ela propôs que o departamento a ser criado ficasse subordinado ao Ministério da Educação e Saúde.
Carlota também era crítica à ideia de que os cargos do referido departamento fossem preenchidos apenas por mulheres. Na visão dela, essa proposta continha um viés nitidamente sexista. Em decorrência das divergências entre as parlamentares, o projeto do Estatuto da Mulher avançou muito pouco e foi atropelado pela implantação do Estado Novo.
As diferenças político-ideológicas entre Carlota e Bertha já se faziam presentes desde os debates da Constituinte. Um dos temas polêmicos foi a proposta de direitos políticos condicionados.
Enquanto Bertha defendia o exercício dos direitos políticos sem condições, Carlota acreditava que, a cada direito usufruído, deveria existir um dever correspondente. A médica sugeriu, por exemplo, que, para que tivessem o direito ao voto, as mulheres deveriam participar de cerimônia cívica de juramento à bandeira nacional e prestar serviços sociais de assistência aos pobres.
Vale ressaltar que essa proposta de direitos políticos condicionados foi rejeitada pela maioria dos deputados constituintes. Por fim, o texto constitucional ratificou o direito de voto às mulheres ao estabelecer o seguinte:
Art. 108. São eleitores os brasileiros de um e de outro sexo, maiores de 18 anos, que se alistarem na forma da lei.
Art. 109. O alistamento e o voto são obrigatórios para os homens e para as mulheres, quando estas exerçam função pública remunerada, sob as sanções e salvas as exceções que a lei determinar.
Percebe-se, pela leitura atenta dos artigos 108 e 109, que, embora o direito de voto estivesse garantido também às mulheres, o alistamento eleitoral e o consequente exercício do voto só eram, de fato, obrigatórios para as que exercessem uma atividade pública remunerada. Como se sabe, na década de 1930, muitas mulheres exerciam funções domésticas no lar e sem remuneração. O alistamento e o voto só se tornaram obrigatórios para todas as mulheres, sem condicionamentos, a partir da Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1946.
Carlota permaneceu na Câmara dos Deputados até 1937, quando o golpe de Estado impetrado por Getúlio Vargas determinou o fechamento de todas as casas legislativas do País. Foi o mais longo recesso parlamentar de nossa história.
Durante o Estado Novo (1937-1945), Carlota lutou ativamente pela redemocratização. Tentou retornar à Câmara dos Deputados, candidatando-se em 1945 pela União Democrática Nacional, mas não se elegeu. Com o golpe de 1964, Carlota posicionou-se a favor da tomada do poder pelos militares.
Mesmo após ingressar na vida política, Carlota sempre teve uma atuação destacada na área médica, tornando-se a primeira mulher a integrar a Academia Nacional de Medicina, em 1942, e ocupando o cargo de presidente da Associação Brasileira de Mulheres Médicas (ABMM), de1961 a 1967.
Homenagem
Carlota faleceu em 1982, em São Paulo, aos 90 anos de idade, deixando um importante legado na luta pela conquista da cidadania feminina no Brasil. Seu nome inspirou a criação, na Câmara dos Deputados, do Diploma Mulher-Cidadã Carlota Pereira de Queirós, instituído pela Resolução nº 3/2003.
Essa condecoração é conferida, anualmente, a cinco mulheres, em diferentes áreas de atuação, que tenham contribuído para o pleno exercício da cidadania, na defesa dos direitos da mulher e nas questões de gênero. É o reconhecimento do Poder Legislativo ao papel da mulher na vida política nacional e uma justa homenagem à memória de sua primeira parlamentar: Carlota Pereira de Queirós.