Rádio Câmara

Reportagem Especial

Cultivares: projeto de nova lei sobre o tema provoca polêmica na Câmara

19/09/2016 - 08h01

  • Cultivares: projeto de nova lei sobre o tema provoca polêmica na Câmara (bloco 1)

  • Cultivares: o desafio de remunerar melhor o pesquisador sem aumentar preço de sementes e alimentos (bloco 2)

  • Cultivares: a decisão sobre o que será plantado no país concentrada na mão de poucas empresas (bloco 3)

  • Cultivares: a importância de índios e pequenos agricultores para garantir diversidade das plantas consumidas no Brasil (bloco 4)

  • O risco de sucateamento das empresas públicas de pesquisa, como a Embrapa (bloco 5)

Há mais de um ano, a Câmara discute um projeto que fala de ciência e economia ao mesmo tempo. Trata de termos como germoplasma, melhoria genética e pagamento de royalties.

Pode parecer que a proposta está muito distante da realidade da maioria da população, mas é o contrário: essa discussão está diretamente ligada à quantidade, qualidade, diversidade e preço dos alimentos que estão na mesa dos brasileiros.

O projeto em questão (PL 827/2015) atualiza a chamada Lei de Cultivares (9.456/97), que em 1997 inovou a legislação brasileira ao prever um pagamento para os pesquisadores que melhorassem a qualidade genética de plantas, as chamadas cultivares.

Cultivar é uma palavra que veio do inglês e mistura os termos cultivated variety, ou variedade cultivada. Uma cultivar é uma planta que foi geneticamente melhorada.

Não é a mesma coisa que uma planta transgênica, que é aquela que recebe um trecho de DNA de outra espécie. Essas são regidas por outra lei, a de Propriedade Intelectual, ou de patentes.

No Brasil, existem mais de duas mil espécies de cultivares protegidos, mas as únicas plantas transgênicas autorizadas são soja, milho e algodão. Os produtores têm que pagar royalties aos donos da tecnologia, meia dúzia de empresas multinacionais. E são proibidos de guardar ou vender as sementes transgênicas para outros.

Já os desenvolvedores de cultivares não tem toda essa proteção, apesar dos gastos envolvidos na atividade, como explica Ricardo Zanatta, do Serviço Nacional de Cultivares do Ministério da Agricultura:

Ricardo Zanatta: "As empresas que se dedicam a isso têm que ter e manter uma coleção de germoplasma, trabalhar o seu melhoramento, fazer os seus cruzamentos. Precisam fazer diversos ensaios de campo, diversos testes laboratoriais. Os profissionais que trabalham nessa área normalmente são agrônomos com doutorado, pós-doutorado em área de melhoramento genético, genética, botânica, fitopatologia, entomologia, solo, fitotecnia, estatística. Então, há muito dinheiro envolvido, há muito conhecimento envolvido e há muito tempo envolvido."

Estes pesquisadores também são chamados de obtentores, ou melhoristas, e pagar pelo direito de propriedade intelectual sobre a semente melhorada foi uma das exigências para que o Brasil ingressasse na Organização Mundial do Comércio.

A Lei de Cultivares em vigor remunera os pesquisadores apenas na hora em que eles vendem a licença para os chamados multiplicadores de sementes.

Isso quer dizer que, quando o agricultor compra um saco de sementes melhoradas geneticamente, está também pagando para o pesquisador. Em contrapartida, terá à disposição plantas mais resistentes e produtivas.

Foi o que aconteceu no Brasil a partir de 1997. Na época, apenas poucas instituições públicas como a Embrapa faziam esse trabalho, como lembra Orlando Melo Castro, vice-presidente do Conselho das Organizações Estaduais de Pesquisa Agropecuária, o Consepa.

Orlando Melo Castro: "A normatização desse segmento permitiu, assim, essa ampliação do melhoramento genético no Brasil, não só por instituições públicas, que era quase que exclusivo, especialmente na área de grãos, falando de soja, milho, algodão e algumas outras espécies, trigo, e permitiu esse avanço significativo que nós temos no agronegócio brasileiro."

A Lei de Cultivares atual permite que o agricultor guarde as sementes para usar na safra seguinte, sem pagar de novo para o pesquisador.

A ideia que está por trás da aprovação de uma nova lei é garantir que o pesquisador receba não só quando o agricultor comprar o primeiro saco de sementes, mas continue a receber daí em diante.

O agricultor passaria a ser proibido de guardar sementes e usá-la novamente sem pagar. As exceções seriam apenas as comunidades tradicionais e os pequenos produtores.

Aí é que começam as polêmicas. A proposta em discussão criminaliza o chamado salvamento de sementes e remunera, não só os pesquisadores, mas também as empresas produtoras de sementes, os multiplicadores.

E todos os personagens fazem reparo nas mudanças. Os pesquisadores acham que só eles deviam receber. Os agricultores temem que as sementes fiquem muito mais caras. O Ministério da Agricultura acha que é impossível fiscalizar os produtores para impedir o uso de sementes salvas. E muitos especialistas acham que o Brasil ficará cada vez mais na mão de poucas empresas multinacionais e que a diversidade de sementes vai diminuir, nos tornando vulneráveis a eventos como as mudanças climáticas.

David Hathaway, economista especialista em variedades agrícolas que trabalha há 30 anos como consultor de organizações não governamentais e agricultores familiares, é contra a mudança. Para ele, o projeto vai diminuir a variedade de produtos ao impedir os agricultores de trocarem e estocarem sementes.

David Hathaway: "Esse hábito, hoje, infelizmente, está ficando uma prática má vista, de guardar a própria semente. É justamente onde essas leis, como a Lei de Cultivares, vem entrar em conflito com a galinha dos ovos de ouro, que é o paiol desse camponês, cujo recurso fitogenético está sendo, na maioria dos casos, simplesmente deixado de lado."

Angela Cordeiro, da Via Campesina, uma organização internacional que representa pequenos agricultores, aponta outras consequências da redução de variedades de plantas: o aumento da concentração do setor em poucas empresas e a vulnerabilidade dos países contra os efeitos das mudanças climáticas.

Angela Cordeiro: "O que está sendo proposto aqui, nós vamos tudo junto para o buraco. Só quem ganha com isso são as empresas que estão dominando o setor de sementes. E nos deixa numa situação muito vulnerável, porque cada vez está mais difícil você encontrar material das organizações de pesquisa pública e a gente vai saber o que vai acontecer com esse negócio de mudança climática e seca etc. e tal, e a gente precisa de diversidade, a gente precisa de investimento e melhoramento genético para poder dar conta dos desafios que nós temos pela frente."

Mas este é apenas um dos lados da questão, que é muito mais complexa. Os pesquisadores defendem uma remuneração justa para o trabalho deles. E consideram isso fundamental para a melhoria das sementes e para o desenvolvimento da pesquisa nacional.

José Américo Pierre Rodrigues, presidente da Associação Brasileira de Sementes e Mudas, a ABRASEM, justifica a proposta.

José Américo Rodrigues: "Esse germoplasma, ele tem dono. A empresa desenvolve esse germoplasma, ela investe em pesquisa. Então, nós levávamos dez anos para desenvolver uma variedade de soja convencional. Investíamos um monte de dinheiro, empregávamos muitos pesquisadores, técnicos agrícolas, fazíamos pesquisas em todo o Centro-Oeste do Brasil e este produto final, que é o germoplasma, ele é protegido pela Lei de Proteção de Cultivares, então ele tem um dono.”

O relator do projeto, o deputado Nilson Leitão, do PSDB do Mato Grosso, resume o problema: acabou o tempo em que o pesquisador não era pago quando o agricultor guardava as sementes melhoradas para usar na safra seguinte.

Nilson Leitão: "A ideia principal, primeiro, é salvar sementes. Esse é o ponto que o agricultor quer. Quer salvar e, para que salve, precisa ser pago. Ninguém que vai pesquisar vai fazer isso de forma gratuita. Não existe essa possibilidade mais. A pesquisa tem que ser respeitada nesse ponto de vista."

O projeto que modifica a Lei de Proteção de Cultivares foi apresentado pelo deputado Dilceu Sperafico, do PP do Paraná. Se aprovado na comissão especial vai direto para o Plenário da Câmara.

Confira, no segundo capítulo da Reportagem Especial: projeto que modifica a Lei de Proteção de Cultivares pode aumentar preço de sementes e de alimentos.

Reportagem – Antônio Vital
Edição – Mauro Ceccherini
Trabalhos Técnicos – João Vicente

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