Rádio Câmara

Reportagem Especial

A loucura pode ser aceita como uma maneira diferente de estar no mundo? (06'31'')

23/08/2010 - 00h00

  • A loucura pode ser aceita como uma maneira diferente de estar no mundo? (06'31'')

"A terapeuta se aproximou de um paciente e perguntou: o que você tem? Pensei comigo, isso é tão chato e pode ser até auto sugestionável. Respondi assim: nada que um placebo não resolva. Então ingeri mentalmente uma pílula poética dessas que não tem contra indicação e nem causam reações adversas. Descobri então que a minha loucura é uma poesia crônica."

Samuel Magalhães tem uma banca na Torre de TV, em Brasília, onde vende artesanato. Para encontrá-lo, é só perguntar pela banca do poeta. Junto das pequenas esculturas, as folhas de papel com suas poesias.

A loucura se mistura com a poesia e não se sabe onde uma começa e a outra termina. Elas se misturaram em uma manhã do ano de 1982, quando teve seu primeiro surto. Depois disso, várias internações, onde narra ter sofrido violência e ter sido violento, muitas vezes.

Para Samuel, a loucura escolhe algumas pessoas, e entrega a cada escolhido uma dor invisível.

"É igual a um vulcão, só entra em erupção em algumas pessoas, não é em todos os lugares, mas porque o fogo já está em toda parte, aí ele só emerge em um lugar. Acho que ninguém suportaria a própria loucura, ela é uma dor invisível. É uma dor que dói onde? É mais coisa de alma mesmo. Essa dor na minha coluna é uma dor forte, mas quando você localiza é mais fácil, mais fácil de mexer com ela, mas essa não tem um local."

Na clínica Anankê, em Brasília, os pacientes se reúnem para uma atividade com música. A presença da reportagem foi negociada. Quando perguntamos se poderíamos gravar, uma mulher se levantou e foi taxativa: não é autorizado gravar os mortos, que dirá os vivos. E a repórter não soube como rebater esse argumento. A sorte é que outros pacientes gentilmente intercederam, e por isso podemos agora ouvir esses sons.

Conduzindo a atividade, estava o psicólogo Thiago Mesquita, que expõe a visão da clínica.

"Teoricamente não é neurotizar o paciente, ou seja, transformá-lo naquilo que se espera dele. Pelo contrário, nossa idéia é endoidar o mundo, ou seja, criar um lugar no mundo para que a loucura e a diferença tenham um lugar. Ele não é normal igual a gente fala, o normal neurótico do dia-a-dia. Ele é um cara que vê o mundo de uma outra forma, é inserir o delírio dentro da sociedade. É possível o sujeito ser delirante e não estar isolado, ser delirante e ter seu lugar."

O historiador Daniel Faria lembra que a loucura nem sempre foi vista como uma doença. A necessidade do isolamento é algo recente, iniciada há cerca de 200 anos.

"No século dezessete, dezesseis na Europa, tem uma ideia do louco como alguém que tem acesso à verdade e que pode dizer as coisas que as pessoas comuns não podem dizer. Então se olhar no teatro do Shakespeare, e até no Dom Quixote do Cervantes, você vai ver que o louco tem um papel social importante a cumprir, que é o de dizer a verdade, desmascarar a hipocrisia, ele tem um lugar, não sei se é nobre a palavra, mas não é um lugar de exclusão."

Daniel Faria é professor na Universidade de Brasília, e em uma das matérias, analisa com seus alunos o que pode ser encontrado por detrás do discurso da loucura.

Segundo ele, é um exercício que pode ampliar a compreensão da realidade.

"A gente é forçado a encarar discursos que ferem completamente aquilo que a gente está costumado a lidar, a acreditar como um discurso sensato. E talvez isso faça a gente perceber coisas da realidade que a gente não perceberia normalmente."

Hoje em dia, muito frequentemente a visão geral é de que uma pessoa com transtorno mental é, literalmente, um transtorno.

Em meio ao sofrimento e à dificuldade, anda esquecida a percepção de como as pessoas diferentes podem agregar uma atitude positiva na convivência com os chamados normais.

A psicóloga Aline Messias recorda uma situação onde ficou clara a sua própria incapacidade, e a grande habilidade do seu paciente em estar no mundo.

"Lembro que quando eu era estagiária, lá no Lago Sul, não tinha ônibus. E um dos pacientes parou uma van e fez a van mudar o itinerário para nos deixar onde a gente queria. Conversando, eu morro de vergonha, não vou pedir, o cara conseguiu mudar todo o funcionamento da van que nos deixou e nos buscou na hora que o cara pediu para nos buscar. Tem outras maneiras de estar no mundo e é possível estar no mundo assim."

"Arrasta-me daqui loucura, arrasta-me para a insanidade do bem, que o teu mal é menor que o mal que eu li no jornal. Leva-me aos poucos ou de uma vez, toma minha mente de assalto, me surta, me converte, mas não me deixe normal. É que eu me envergonho das coisas normais, das arrogâncias, das hipocrisisias, do mau humor e da ganância que corrompe a alma."

De Brasília, Daniele Lessa

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