Rádio Câmara

Reportagem Especial

Grande Sertão Veredas: a riqueza cultural do sertanejo (11'18'')

09/08/2010 - 00h00

  • Grande Sertão Veredas: a riqueza cultural do sertanejo (11'18'')

Ser chamado de "matuto", "caipira", "roceiro" ou "capiau" costuma deixar muita gente irada e revoltada por aí. Geralmente, o tom pejorativo e debochado escancara preconceitos contra as pessoas que levam uma vida bem simples e rústica nos meios rurais.

Mas esse povo interiorano é dono de tradições, costumes e conhecimentos muito ricos e capazes de proporcionar dinheiro e orgulho.

"Sou só um sertanejo, nessas altas ideias navego mal. Sou muito pobre coitado. Inveja minha pura é de uns conforme o senhor, com toda leitura e suma doutoração. Não é que esteja analfabeto. Soletrei, anos e meio, meante cartilha, memória e palmatória. Tive mestre. Mestre Lucas, no Curralinho, decorei gramática, as operações, regra três, até geografia e estudo pátrio". (Guimarães Rosa)

João Guimarães Rosa foi mestre ao beber da cultura que ele presenciou no norte e noroeste de Minas Gerais, região ora marcada pela aridez do sertão ora repleta de extensas veredas de buritis.

O escritor fazia questão de bater longos papos com essa gente simples das gerais e anotava tudo o que era possível: crenças, falas, piadas, cantos, superstições e muitos causos.

Dessa vivência, surgiram preciosidades da literatura brasileira, como "Grande Sertão: Veredas", "Sagarana" e "Corpo de Baile", que reproduziram a essência do sertanejo e eternizaram a região.

Hoje, as ações conjuntas do poder público, da iniciativa privada, das cooperativas, das ONGs e dos assentamentos de reforma agrária levam o desenvolvimento à região do Vale do Urucuia - Grande Sertão Veredas.

Mas os envolvidos nesse processo têm consciência da obrigação de serem fiéis à preservação da cultura e da paisagem locais, tão bem descritas por Guimarães Rosa.

Em Chapada Gaúcha, porta de entrada do Parque Nacional Grande Sertão Veredas, a coordenadora do Instituto Rosa e Sertão, Damiana Campos, revela que todos os projetos culturais, educativos e ambientais em andamento estão impregnados da obra rosiana.

"Como a gente está na porta do Grande Sertão Veredas, ao lado do Sussuarão, dentro do Vão dos Buracos, próximo à Serra das Araras, próximo a Urucuia, não poderíamos não respirar Guimarães Rosa. E a gente tenta tocar o coração de cada um pela sensibilização de quanto é importante esse ambiente em que a gente vive, o quanto é tradicional, é bonito, é intocado e como o Guimarães conseguiu descrever tão bem a forma de vida do sertanejo. E a gente propaga isso através da contação de histórias e na prática de valorização da paisagem e do tradicional".

Em meados do século passado, Guimarães Rosa seguiu uma boiada comandada pelo capataz Manuel Narde, o Manoelzão, por vários dias, em Andrequicé, atual distrito de Três Marias.

Nada passou despercebido para o escritor que, anos mais tarde, publicaria o livro "Manoelzão e Miguilim". Essas mesmas histórias ainda são entoadas hoje pela região.

A coordenadora do grupo Contadores de Histórias Manoelzão, Noeli Oliveira, conta como a cultura regional tem servido para resgatar a autoestima do sertanejo.

"O carro-chefe é Guimarães. Guimarães brinca com as palavras. Há neologismos? Há. No entanto, o que ele coloca ali, primeiro, ele se baseou em fatos reais. Há contadores que falam comigo assim: 'aqueles casais que casaram lá na comunidade de Pedras são meus avós'. Então, é assim: ele se vê personagem. Quando a gente canta 'a Senhora do Socorro', todo mundo ali no público canta. São cantos nossos, da nossa tradição. O jeito de falar: 'nadinha, ah nadinha. Nonada'. Somos nós. É a nossa identidade. E quando você trabalha buscando a identidade da pessoa, há afinidade e, a partir daí, autoestima. E se tem autoestima, todo mundo aceita".

Se estivesse vivo e voltasse a peregrinar hoje pela região do Vale do Urucuia - Grande Sertão Veredas, como fez a reportagem da Rádio Câmara para produzir essa série de matérias, certamente Guimarães Rosa encontraria outras tantas boas histórias, falas e cantos para anotar.

Talvez ele até se comovesse ao saber que os projetos culturais e educacionais inspirados em sua obra estão transformando positivamente a vida de muitos sertanejos.

Argemiro de Jesus, com mais de 60 anos de idade, é um deles. Lavrador e morador de Sagarana, distrito de Arinos, ele foi à luta para realizar o sonho de aprender a escrever.

Junto com outros 300 colegas da região, Seu Argemiro acabou de se formar no curso de alfabetização conduzido pela Fundação Banco do Brasil. Veja como a descoberta de uma sílaba e de um ditongo pode injetar ânimo na vida das pessoas.

"Como se diz, para ler, até que eu não tinha muita dificuldade, porque eu aprendi, pela minha necessidade. Mas, para escrever, eu não tinha conhecimento da linguagem: a palavra tem sílaba, tem ditongo, tem tanta coisa. Eu não conhecia isso, não sabia disso. A professora foi dando as idéias para a gente, eu gostei tanto que hoje eu faço supletivo, em Arinos. Estou estudando para ter um conhecimento melhor".

MÚSICA: "Desafio" (Cantigas de Roda do Sisal)
"Ê vamos vadiar... / Essa cultura é nossa, temos que valorizar / Foi nossos pais que deixou, não pode se acabar / Foi trabalhando na raça, que aprendemos a cantar...

A música e a dança são outros dois fortes elementos da cultura do Grande Sertão Veredas que teimam em resistir aos novos modismos. A região preserva as folias, o canto das fiandeiras, as rodas de viola e os bailes de forró.

O povo canta tanto o repertório tradicional passado de pai para filho quanto as novas composições que surgem do talento autodidata do típico sertanejo das gerais.

Encontramos um casal bem autêntico na labuta diária do cultivo da terra e da produção musical. Coriolano Ferreira, 72 anos, e Teresa Bueno, 60 anos, vivem no assentamento Boa Esperança, em Buritis, uma comunidade dedicada à agricultura familiar.

Os dois cantam guarânia, xote, galope e folia. Seu Coriolano comanda o violão e Dona Teresa impera no vocal. Conforme eles dizem no bate-papo a seguir, o momento mágico da composição musical surge pelo "dom da natureza".

Coriolano - "A criação das músicas é a seguinte: a música é como a vida da gente. Ela começa, nasce e vai crescendo até chegar o ponto de paralisar. A música tem que ter sentido. A gente trabalha, como se diz, com prazo e com calma e vai conjugando as palavras umas com as outras, até formar a música".

Repórter - "Violão, quem ensinou para o senhor?"

Coriolano - "Violão, eu aprendi, como se diz, pelo dom da natureza. Eu fui tentando, fui tentando, não tive professor em ponto nenhum: nem para a música nem para o violão".

Repórter - "E a senhora, dona Teresa, alguma dessas músicas que foram cantadas aqui é da senhora exclusivamente?"

Teresa - "É de nós dois. Como dizem, ele vai fazendo a letra lá e eu vou compondo, mais ele".

Coriolano - "A música nossa é uma música gêmea".

Teresa - "Nós cantamos na rádio por sete anos: Rádio Buritis".

Coriolano - "Temos um cedezinho gravado".

Em parceria com os 11 municípios do Vale do Urucuia - Grande Sertão Veredas, o Ministério da Cultura anunciou investimentos de 3 milhões de reais para a instalação de pontos de cultura, pontos de leitura e pequenas salas de cinema na região eternizada por Guimarães Rosa.

Também será feito um mapeamento cultural para identificar e apoiar a expressão artística local. A secretária de articulação institucional do ministério, Silvana Meireles, avalia que o turismo cultural também pode ser um catalizador de recursos para a região.

"Eu acho que a gente está fazendo uma travessia, como Guimarães sugere lá no 'Grande Sertão: Veredas' e, com certeza, vamos ver uma série de coisas, no meio dessa travessia, se apresentando, brotando e aflorando, porque essa região tem um solo fértil. É preciso que o Brasil a conheça, que ela comece a se organizar e aí esse potencial vire economia também".

O mesmo cenário sertanejo, ora seco ora enfeitado de veredas, abriga potenciais econômicos, belezas naturais, ações concretas de parcerias, e, sobretudo, um povo rico em cultura, simpatia e hospitalidade, como sintetiza Damiana Campos, do Instituto Rosa e Sertão.

"Isso é que é legal do sertanejo e da população tradicional: você sentou, puxou uma prosa e ele gostou de você, pronto, eles sempre têm uma historinha para contar. O causo sempre vai ter uma reinvenção e não tem como você não se apaixonar porque o 'Grande Sertão: Veredas' fala isso a todo momento: são causos entrando, causos saindo. Um causo hoje nunca é o causo de amanhã. Como é que eu vou sair de um lugar desses? Não tem condições. Vamos sentar na beira do fogão e eu vou te contar uns causos bons, menino: da mulher que virou cadela, de gente que virou cupim, gente que virou moita. E eles falam: 'é verdade, aconteceu com fulano de tal'. Você vai desmentir? Não vai, né? Não 'aduvide', não".

Com todos esses atributos, a região do Grande Sertão Veredas realmente não pode deixar de reescrever a sua história de olho em melhores condições de vida para a população. E é o seu próprio povo sertanejo quem toma as rédeas da história para assumir o papel principal.

De Brasília, José Carlos Oliveira

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