Rádio Câmara

Reportagem Especial

Grande Sertão Veredas: tecnologias sociais e desenvolvimento sustentável (09'54'')

09/08/2010 - 00h00

  • Grande Sertão Veredas: tecnologias sociais e desenvolvimento sustentável (09'54'')

"Eu quase nada não sei. Mas desconfio de muita coisa. O senhor concedendo, eu digo: para pensar longe, sou cão mestre - o senhor solte em minha frente uma ideia ligeira, e eu rastreio essa por fundo de todos os matos, amém!" (Guimarães Rosa)

Imagine uma técnica, um método ou um produto surgido da interação de conhecimentos popular e científico e que, aplicado a uma determinada situação, traga soluções efetivas para um grupo de pessoas ou comunidade.

Esses métodos e produtos surgidos coletivamente constituem as chamadas tecnologias sociais. O soro caseiro usado no combate à desnutrição é o exemplo mais clássico. Mas existem muitas outras tecnologias sociais reaplicáveis às variadas realidades regionais brasileiras, capazes de oferecer soluções simples e eficazes nas áreas de educação, saúde, geração de renda, habitação, meio ambiente e tantas outras.

José Damasceno, o Seu Zé, preside a Associação dos Assentados de Boa Vistinha, no município de Buritis. A comunidade vive da agricultura familiar, voltada para a subsistência, e também produz cana e mandioca. Juntas, as cerca de 20 famílias do assentamento conseguiram até montar uma pequena agroindústria para a fabricação de açúcar mascavo, rapadura, farinha e polvilho.

A comunidade de Boa Vistinha segue métodos da tecnologia social conhecida como PAIS: Produção Agroecológica Integrada e Sustentável, baseada no uso racional da terra e da água, sem agrotóxicos nem desperdício dos recursos hídricos.

Seu Zé exalta o trabalho comunitário que também tem ajudado a reduzir o êxodo rural na região.

"Cada família faz o seu e paga 6% para a associação para manter as despesas de energia e de máquina que estraga. Trabalhamos em conjunto. A juventude participa de todos os trabalhos que os mais velhos já vinham fazendo, adquirindo novos conhecimentos. A renda para nós hoje, graças a Deus, é uma renda até boa - que é essa renda das coisas que a gente produz, mais um leitinho que nós estamos tirando agora e que está ajudando muito também. O jovem que se interessa em trabalhar na roça está ganhando um bom dinheiro na própria comunidade".

O professor da UnB e coordenador do Observatório do Movimento pela Tecnologia Social na América Latina, Ricardo Neder, vibra com as experiências comunitárias em curso no Vale do Urucuia - Grande Sertão Veredas.

"O movimento pela tecnologia social, que começou há uns 10 anos no Brasil, colocou um ovo de pé. É o ovo que o Seu Zé, da Boavistinha, está mostrando: ´oh, o meu conhecimento é tão válido quanto o do cientista, quanto o do tecnólogo´. Aí, pode-se dizer: ´mas isso, o agrônomo também detém´. Mas o agrônomo não vive aqui com a gente. A gente é que tem a solução do saneamento, da comida, da construção da casa, e a gente também tem a solução do bem-viver. E esse conhecimento pode ser passado para outros agricultores, produtores familiares organizados em comunidade? Pode, mas temos que preparar as pessoas porque muita gente vai querer fazer patente de tecnologia social. Se ela é social, não pode ser uma tecnologia patenteada."

Ricardo Neder ressalta que esse modelo de desenvolvimento baseado em tecnologias sociais tem eficácia ainda maior quando vem acompanhado de estratégias coletivas para a comercialização dos produtos economicamente solidários.

O professor da UnB critica os projetos públicos ou privados que são aplicados de cima para baixo e não respeitam a realidade local.

Ele teme, por exemplo, que o avanço do agronegócio, baseado na monocultura da soja, desarticule a agricultura familiar e sustentável que hoje funciona bem em várias comunidades do Vale do Urucuia - Grande Sertão Veredas.

"Esse é o grande perigo: o de tornarmos essa comunidade de Boa Vistinha subordinada a uma desorganização de mercados locais em função de trabalhar para a monocultura. Em que país do mundo você acha que a monocultura abre postos de trabalho para o Seu Zé e os filhos dele? Um produtor de soja ou de braquiária lá de Chapada Gaúcha (por exemplo), nós visitamos e fizemos o levantamento: todas as famílias produtoras - são 78 famílias produtoras de soja - têm em média dois empregados. Então, na realidade, a monocultura, no campo brasileiro, é devastadora do ponto de vista da geração de empregos".

A Fundação Banco do Brasil é a principal incentivadora das tecnologias sociais aplicadas na região. Foi exatamente em Sagarana, distrito de Arinos, que a entidade instalou o primeiro Centro de Referência em Tecnologias Sociais do país.

O gerente de monitoramento de projetos da fundação, Fernando da Nóbrega, explica que o centro, chamado de "Cresertão", é um espaço físico que serve para visualização, aprendizado e difusão das experiências.

"Temos aportado recursos tanto na disseminação e implementação dessas tecnologias quanto na criação de centros. Esse, porventura, é o primeiro, mas de uma série de cinco que estão elencados para acontecer no decorrer desse ano. Esse centro prevê a concentração de várias dessas tecnologias que já foram premiadas e certificadas pelo Banco de Tecnologias Socias da fundação e, a partir dessas mais exitosas, a gente termina fazendo o esforço de reaplicação das mesmas, com o intuito de potencializar o resultado dessas tecnologias."

Uma delas é a tecnologia social das barraginhas, que está sendo reaplicada por meio de parcerias do consórcio dos 11 municípios do Vale do Urucuia com a Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba, a Codevasf.

O coordenador do projeto barraginhas em Arinos, Vandilson Soares, disse que serão instaladas 13 mil mini bacias de captação de água da chuva, só nesse município.

"A função básica da barraginha é simplesmente reter a água de enxurrada. Retendo a água de enxurrada, isso vai possibilitar maior infiltração da água no solo, abastecendo os cursos d´água; também vai reter sedimentos que normalmente são carreados para os corpos d´água provocando assoreamento; também umedece as proximidades do local armazenado, possibilitando que a vegetação cresça com mais vigor".

O coordenador do Centro de Referência em Tecnologias Sociais do Sertão, Virgílio Martins Junior, aposta nas riquezas cultural e ecológica da região para implementar o necessário desenvolvimento em bases sustentáveis.

Virgílio conta com a plena participação do povo local no aprendizado e na difusão das experiências reunidas no Cresertão.

"A concentração desses elementos nessa região nos trouxe a reflexão de que poderia ser aqui o lugar onde a gente estaria trabalhando com desenvolvimento sustentável, considerando as reservas que ainda estão de pé, e trabalhando a questão do turismo também para que essas reservas realmente permanecessem como um legado das gerações passadas para as gerações presentes e futuras. O resultado vem de acordo com o entendimento das pessoas. Se você entendeu bem o que você está trabalhando em termos de educação, então, você vai saber passar com convicção e isso pode facilitar o caminho".

Muita gente já entendeu o recado e quer participar ativa e coletivamente do processo de mudança na região. Mércia de Jesus Ferreira, de 29 anos, é uma delas. Separada e com um filho de 9 anos para criar, ela ainda encontra tempo e disposição para cursar o supletivo de ensino médio, aprender as novas tecnologias sociais disponíveis e fazer do Cresertão um instrumento de autoestima para o sertanejo das gerais.

"Aqui em Sagarana, eu faço serigrafia. Oficina de empreendedorismo e oficina de marcenaria, eu comecei a fazer, mas eu não dava conta de fazer duas ao mesmo tempo e segui a cozinha comunitária. Essa casa (Cresertão) que foi inaugurada agora... eu fiquei muito alegre porque eu olho a casa e penso: ´meu Deus, essa casa é um sonho que nasceu em Sagarana como um fruto começado, primeiramente, de nós, de nós’. Nós lutamos muito para ter essa casa aqui. Então, para nós isso foi (sic) um futuro e a coisa que deixa a gente mais assim de astral para cima. Eu gosto de viver na comunidade. Todo mundo é igual. Nós somos pessoas humildes, pobres de verdade, mas somos ricos de coração, de verdade mesmo".

As várias tecnologias sociais concentradas no Cresertão também serão disseminadas por meio de visitas itinerantes aos assentamentos agrários do grande sertão das gerais.

De Brasília, José Carlos Oliveira

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