Rádio Câmara

Reportagem Especial

Grande Sertão Veredas: um cenário em transformação (09'56'')

09/08/2010 - 00h00

  • Grande Sertão Veredas: um cenário em transformação (09'56'')

O universo retratado pelo escritor Guimarães Rosa passa por profundas transformações. A região do Grande Sertão Veredas já foi descrita como "terra de ninguém" num cenário de natureza exuberante, mas, ao mesmo tempo, seco, pobre, violento e dominado por jagunços.

Hoje ainda há muita pobreza por lá, mas boa parte do povo local, por meio do associativismo e da aplicação de tecnologias sociais, decidiu assumir o protagonismo das mudanças, valorizando a própria cultura e a paisagem do sertão das gerais.

Outro trunfo é a união de forças entre poder público, entidades privadas, ONGs e sociedade civil na busca do desenvolvimento regional possível.

SONORA: (Claudionor)
"O nosso lugar lá é fraco. A terra é fraca, é terreno carrasco, né, e quase não produz muita coisa, não. A gente se serve com a água do rio. Hoje já melhorou mais, porque hoje já tem luz para nós, né. Era um lugar muito esquecido o nosso lugar".

SONORA: (Higino)
"Nós trabalhamos mais é com mandioca. É boinha, até. Dá para a gente ir levando. (A gente) Mexe com gadinho também. Por enquanto, está sendo consumo próprio. Mas, se aumentar, nós poderemos lutar para vender fora, na cooperativa. Esperamos que Deus abençoe. Hoje tem um poço artesiano muito bom. Nós temos água encanada, tudo. Está uma belezinha. Só está dependendo de a gente organizar direitinho e dar valor ao que nós temos hoje".

SONORA: (Marinês)
"Aqui é rico de tudo. Aqui é um lugar que, se você procurar, tudo você acha. Só que nós, as pessoas do lugar, não sabemos valorizar aquilo que temos. Aqui tem muitas matas, muita água, muita madeira, muito fruto. Na época dos frutos, eles fazem mutirão de pessoas. Esses sucos que vocês estão tomando aí é de frutos daqui: sucos de maracujá, de jenipapo, isso é tudo daqui. Nós sabíamos valorizar isso aí? De jeito nenhum".

SONORA: (José Alves)
"Nós temos a associação, onde temos uma agroindústria, onde fabricamos açúcar mascavo, a rapadurinha, a farinha e o polvilho. Isso em prol da sustentação das famílias. Funciona assim: trabalhamos em conjunto. Quando uma família é pequena e não consegue produzir sozinha, associam-se duas ou até três famílias e produzem. No movimento da alimentação, quase tudo é produzido dentro da comunidade".

SONORA: (Andreíza)
"Eu pretendo fazer uma faculdade, não sei se na área de informática. Com certeza, com essa faculdade, almejo um futuro melhor para mim, coisa que os meus pais não tiveram e que eles estão tendo a oportunidade de projetar para mim. O meu pai sempre trabalhou com a terra e a minha mãe o ajudava, só que eles não tiveram estudo e agora eu estou tendo a oportunidade de estar estudando, ao contrário deles, e fico feliz por isso".

Seu Claudionor, Seu Higino e Seu Zé são autênticos sertanejos do Grande Sertão Veredas. Os rostos enrugados testemunharam o passado de penúria e as mudanças recentes na região, muitas delas tocadas por suas mãos calejadas no cultivo da terra.

Já Marinês e Andreíza são jovens, mas não menos preocupadas em valorizar a riqueza do lugar onde nasceram, cresceram e vivem.

Não importa o sexo nem a idade, o sertanejo das gerais está tomando as rédeas do desenvolvimento regional, consciente de que ainda há muito trabalho pela frente.

MÚSICA: "Chapadão" (Roberto Corrêa)
"Chapadão já alquebrado, cofre de recordação
Do pau-terra recurvado pelos ventos do sertão
Chapadão da velha igreja, eu sou quase um filho teu
Triste aldeia sertaneja que o progresso esqueceu
Chapadão da passarada revoando em mais de mil
Da mais linda alvorada do interior do meu Brasil..."

A região conhecida como Vale do Urucuia - Grande Sertão Veredas - abrange 11 municípios do norte e noroeste de Minas Gerais e vai da margem esquerda do rio São Francisco até as divisas com Goiás, a oeste, e Bahia ao norte.

Foi colonizada, inicialmente, por bandeirantes em busca de minerais preciosos e depois cedeu espaço para pequenas atividades agropastoris.

A paisagem de cerrado alterna cenários bem secos com outros mais úmidos, dominados por veredas de buritis, chapadões, cavernas e rios caudalosos.

A cultura, os costumes e as tradições regionais são tão peculiares que inspiraram Guimarães Rosa a escrever clássicos da literatura, como "Grande Sertão: Veredas" e "Sagarana".

No entanto, o histórico regional é de pobreza. O Índice de Desenvolvimento Humano médio dos 11 municípios, medido no ano 2000, ficou entre os menores de Minas Gerais.

Saúde, educação e emprego ainda são precários. A desigualdade social é acentuada: há algumas bolhas de riqueza econômica, onde o agronegócio explora a monocultura da soja, mas a grande maioria dos cerca de 120 mil habitantes leva uma vida bem humilde e com muitas carências, sobretudo nas dezenas de assentamentos da Reforma Agrária que povoam o sertão das gerais.

Mas como é possível que uma região tão culturalmente e ecologicamente rica possa se conformar com essa situação de pobreza econômica? Qual o modelo de desenvolvimento ideal para um lugar tão peculiar assim?

O coordenador do Observatório do Movimento pela Tecnologia Social na América Latina, Ricardo Neder, avalia que o povo e as autoridades locais já estão dando respostas práticas e satisfatórias a essas perguntas.

Segundo Neder, não há ilusão de que a realidade regional vá mudar da noite para o dia, mas existe a certeza de que as ações coletivas de economia solidária que estão em curso já traçam um novo destino para a região, com pleno respeito às tradições locais.

"Em regiões como essa, do Vale do Urucuia, a comunidade primeiro se organiza em grupos familiares - 10, 11 grupos - que constituem uma comunidade e produzem o suficiente para eles. Há casa de farinha, produção de cana, feijão, arroz. Eles conhecem as frutas do cerrado, dominam a tecnologia. A produção familiar é sustentável, não devasta a ecologia da região e há conhecimento técnico de pai para filho. Então, o governo local se junta com outros governos locais - essa é a ideia do consórcio - para alimentar o financiamento de bons programas de boa assistência de saúde, uma estrada em boas condições de manutenção, rede elétrica, acesso à telefonia. Então, são bens coletivos que não exigem que eles mudem a economia local".

Onze prefeituras se uniram num consórcio intermunicipal e criaram a Agência de Desenvolvimento Integrado e Sustentável do Vale do Rio Urucuia, que tenta articular as várias ações regionais promovidas por órgãos públicos, ONGs e outras entidades da sociedade civil. Anualmente, os parceiros desse projeto se reúnem em Sagarana, distrito de Arinos, para avaliar resultados e traçar novas metas. A última edição desse encontro foi acompanhada de perto pela reportagem da Rádio Câmara.

Esse modelo diferenciado de desenvolvimento, baseado na aplicação de tecnologias sociais e na união de esforços num território de características comuns, tem ajudado a região a receber investimentos públicos e privados e também tem atraído a atenção e o estudo do meio acadêmico.

Mestrando do Centro de Desenvolvimento Sustentável da UnB, o geógrafo Venícius Mendes escolheu o Vale do Urucuia - Grande Sertão Veredas como foco de sua tese.

"A visão territorial de desenvolvimento resgata a ideia de pertencimento de uma sociedade com o local onde essas pessoas habitam, com toda a história e todo o significado cultural que um determinado espaço tem na sociedade. O que é bem diferente da visão regional, que é delimitada por espaços político-administrativos. Os programas, juntamente com as ações da população local, têm obtido alguns resultados que são bons. As pessoas hoje acreditam mais no potencial de desenvolvimento do território deles, o que dá esse apoderamento de as pessoas tomarem a responsabilidade e não esperarem somente do poder público as melhorias socias e econômicas".

Numa das passagens do livro "Grande Sertão: Veredas", Guimarães Rosa afirma, por meio do jagunço Riobaldo, que o real da vida não está no princípio nem no fim, mas "se dispõe para a gente é no meio da travessia".

Pois a região que tanto encantou o escritor parece estar vivendo agora esse momento de travessia com grande respeito aos costumes do sertanejo e à paisagem do cerrado das gerais.

De Brasília, José Carlos Oliveira

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