Rádio Câmara

Reportagem Especial

Especial Brasília III - A dura rotina dos trabalhadores na construção da nova capital ( 15' 18'' )

20/04/2005 - 00h00

  • Especial Brasília III - A dura rotina dos trabalhadores na construção da nova capital ( 15' 18'' )

Locutor: No terceiro dia da série de reportagens sobre a construção de Brasília, o repórter Antônio Vital conta a dura rotina dos trabalhadores na nova capital. Pessoas vindas de todos os cantos do país para abrir estradas e erguer prédios. E ele mostra o depoimento de um operário que garante ter presenciado um massacre de 30 pessoas em um canteiro de obras, episódio que a história oficial garante não ter ocorrido.

A Sinfonia da Alvorada, composta por Tom Jobim e Vinícius de Moraes, em 1960, a pedido do presidente Juscelino Kubitschek, é a trilha sonora perfeita para a história de Brasília. A música alterna momentos épicos com passagens dramáticas. Mostra a ação nos canteiros de obras e a solidão no cerrado. Tem momentos tensos. Outros, alegres.

Os pioneiros que construíram a cidade não escondem a emoção ao falar daquele período, marcado por abnegação, espírito de aventura e também por violência. Enquanto os tratores rasgavam o cerrado e operários erguiam formas de concreto e asfaltavam as estradas, o governo Juscelino Kubitschek sofria forte oposição e enfrentava até tentativas de golpe de Estado, como a que ocorreu em Aragarças, em 1959.

Em Brasília, a nova fronteira do país, a disciplina era imposta aos operários pelos temidos policiais da Guarda Especial de Brasília, a GEB.

Na futura capital, 60 mil operários eram comandados com mão-de-ferro por Israel Pinheiro, político mineiro que tinha largado um mandato de deputado federal para construir Brasília.

O chefe-de-gabinete de Israel era o arquiteto Ney Ururahy, que hoje, aos 84 anos, é um paisagista de renome na cidade que ajudou a construir.

Ney lembra do antigo chefe como um homem bondoso, que exibia uma capa de severidade para se proteger e impor disciplina. O jovem arquiteto veio para a futura cidade em 1956, junto com Israel e o médico Ernesto Silva. O grupo pousou na pista do Catetinho, aberta por Bernardo Sayão, vice-governador de Goiás idolatrado pelos operários. Ney conta como o improviso marcou o início das obras.

"Quando eu vim pra cá, eu não vim como chefe de gabinete do Israel. Eu vim, trazido por Ernesto Silva, para ser chefe do Pessoal, coisa que eu nunca tinha sido. E a primeira folha de pagamento da Novacap nós fizemos numa folha de papel almaço manuscrita"

Em pouco tempo Ney estava na linha de frente da equipe que coordenava a construção. Não havia alojamentos para os operários. Ele lembra que os peões, chamados de candangos, começaram a ocupar uma área com barracos de madeira, lugar batizado de Candangolândia.

"As pessoas não tinham onde morar. Então pediam um resto de obra, tábuas velhas e, por acaso, eu é que estava incumbido disso aí, e pediam material para fazer. Mas onde fazer? Então vamos fazer aqui atrás, porque nós estávamos certos de que tudo seria desmanchado".

Ney Ururahy não esconde a saudade da aventura que viveu no grande canteiro de obras. E fala com admiração dos companheiros que chefiavam a empreitada, como Israel, Lucio Costa, Oscar Niemeyer e, claro, Juscelino.

"Eu sei é que era uma época fantástica, que reuniu pessoas fanásticas, e só assim a cidade foi feita. Se não houvesse um Israel Pinheiro, um Lucio Costa, um Oscar, um Juscelino, claro. Os peões adoravam, né? Ele realmente ia às obras, ele realmente verificava, cobrava, né?"

Pouco se sabe a respeito dos acidentes de trabalho e casos de violência ocorridos nessa época. A história oficial menciona isso superficialmente. Mas causou comoção nos canteiros de obra, em janeiro de 1959, a morte de Bernando Sayão, esmagado por uma árvore quando abria a rodovia Belém-Brasília.

Em Brasília, os carros circularam com fitas pretas nos pára-choques. E Sayão, que Juscelino considerava uma reencarnação dos antigos bandeirantes, acabou inaugurando o cemitério Campo da Esperança.

Ney Ururahy fala com admiração de Sayão.

"O Bernardo Sayão era uma figura. Primeiro, era uma figura humana incrível, era um Jonh Wayne, sabe? Muito simpático, um desbravador, uma pessoa de ação. Acho que ele morreu de uma maneira como viveu"

Os operários choraram a perda de Sayão. Aqueles homens vindos de toda a parte do país para trabalhar duro se identificavam com aquele grandalhão enérgico, sempre animado, e que topava qualquer desafio.

Um desses operários gravou um depoimento de três horas em meia, em 1991, aos pesquisadores do Arquivo Público do Distrito Federal. Eronildes Guerra de Queiroz foi servente de pedreiro e depois cozinheiro nos canteiros de obra da empresa Pacheco Fernandes Dantas. Como os colegas, idolatrava o engenheiro.

"Bernardo Sayão, o homem mais trabalhador de Brasília na época. E a peãozada, os candangos aqui de Brasília, os peões que trabalhavam naquela época não eram os candangos não. Eram os peões. Aí era tudo a favor dele. Se aquele homem fosse o presidente da República, Brasília ele ganhava em peso".

Eronildes tinha 22 anos em 1957, quando chegou em Brasília vindo da cidade pernambucana de São José de Siriji. Ele viu Juscelino diversas vezes nas obras e tem uma opinião a respeito do maior desafio enfrentado pelo presidente em Brasília.

"Em Brasília eu acho que foi o Congresso Nacional que mais deu dor-de-cabeça a ele, o Congresso e Senado. Que mais deu dor-de-cabeça pra ele. E também a barragem. A do Congresso Nacional deu muita dor-de-cabeça. Eu via ele, na época mesmo, ele andava é no meio da gente, de bota, de sapatão, aquelas botonas dele, ele, Bernardo Sayão, né? Sempre com Bernardo Sayão do lado".

O grande acampamento em que se transformou Brasília primeiro atraiu goianos das imediações. Depois, começou a chegar gente de todos os lugares, principalmente do Nordeste, como o personagem dessa música de Gordurinha, "Súplica cearense", sucesso nas rádios em 1960. Todos trabalhavam de sol a sol, de olho nas horas extras que ganhavam pelo serviço noturno.

"Brasília não parava. Era dia e noite, sem parar. Tinha a turma que trabalhava de noite e a turma que trabalhava de dia.

De servente de pedreiro, Eronildes foi requisitado para a cozinha da empresa, apesar de nunca ter cozinhado na vida.

"Lá a gente tinha que fazer, além de trabalhar o dia inteiro, tinha que fazer café pra turma da obra e pão com manteiga até meia-noite. Era até meia-noite: café e pão com manteiga"

Da cozinha do acampamento da Pacheco Fernandes, perto do Palácio da Alvorada, Eronildes afirmou ter presenciado um episódio até hoje envolto em mistério: um massacre de operários que a história oficial nega ter acontecido.

Era sábado de carnaval de 1959. Eronildes conta que três armadores, os operários encarregados de fazer a armação de ferro para o concreto, começaram a quebrar o refeitório. Alguém chamou a GEB - a Guarda Especial de Brasília - e os peões da obra se uniram para impedir a prisão dos companheiros. Os policiais pediram reforços.

O que Eronildes contou aos pesquisadores do Arquivo Público do DF não tem comprovação em documentos. Mas ele descreveu o que teria ocorrido em detalhes.

"O major que era o comandante, me parece que era o major Gastão, não sei. Era o comandante. Aí mandou a turma entrar, fazer fila, todo mundo fazer fila para apanhar. E quem corresse levava chumbo. Aí a turma, coitada, a turma ficou tudo apavorado, começaram a correr. Aí, quem não enfrentava a fila e corria, eles metiam fogo, metiam bala. Sem dó".

Eronildes afirmou ter ficado escondido na cantina da obra enquanto os policiais perseguiam os operários. As balas perdidas, segundo ele, fizeram vítimas nos dormitórios.

"Teve nego que morreu na cama, dormindo. Que eles atiravam naqueles caras que estavam correndo, às vezes erravam. A bala pegava na tábua, que era tudo tábua naquela época, matavam o cara dentro que estava dormindo na cama. Justamente aqueles caras que trabalhavam a noite inteira. Que aí ia levantar para trabalhar novamente. Que trabalhava só à noite. E, além de fazer a tarefa, ganhava hora extra".

Um detalhe do depoimento de Eronildes coincide com a versão oficial do episódio. Ele garante que os corpos foram levados para Formosa, em Goiás. Só um ficou para trás, o de um operário que tinha se escondido depois de ferido e foi achado no dia seguinte. Oficialmente, só houve um morto no confronto.

"Só sobrou um cadáver, que foi um chefe de pedreiro, um moreno forte. Ele recebeu uns balaços e se jogou debaixo do acampamento, que os acampamentos eram altos. Aí eles não viram. Se esqueceram dele. Caçaram tudo, fizeram um apanhado e esqueceram desse. Esse amanheceu o dia morto lá debaixo".

Eronildes não sabe quantos morreram no confronto. Garante que, depois disso, metade dos 4 mil operários da Pacheco Fernandes abandonou a empresa. Do massacre, ele lembra que vários colegas desapareceram. E que as malas deles ficaram lá.
"Daí eu conversei com o sargento Pinto. E aí disse a ele: Pinto, quantas pessoas morreram aí? Ele disse: rapaz, não pode falar, não. Nego mata a gente. Você, cuidado. Ele era o sargento Pinto, do Piauí, aposentado. Aí então ele disse: rapaz, eu vou te falar: o que sobrou de mala não está no gibi".

Oficialmente, o massacre da Pacheco Fernandes não existiu. Não passou de um acidente isolado com um saldo de um morto e três feridos graves. Ney Ururahy, então chefe de gabinete de Israel Pinheiro, garante que há muito exagero na história.

"É um exagero terrível tudo isso. A polícia era muito pesada realmente. Mas era muito natural que o fosse. Olha, isso aí passou tão despercebido na época que só muitos anos depois as pessoas começaram a falar, e a imprensa começou a falar sobre isso"

Meditação, na voz de Maísa, embalava os sonhos de muitos pioneiros na época da inauguração da cidade, depois de três anos de muito trabalho e sacrifício. Para chefes e operários. Uma lembrança que Ney guarda com orgulho.

"A honra de ser pioneiro é de ter vivido essa época, que ninguém pode me tirar. Porque foi um privilégio, numa mesma época, ter convivido com essas pessoas fantásticas, com o espírito só voltado praquilo: inaugurar a cidade"

Brasília começou a atrair trabalhadores antes mesmo de iniciada. Em dezembro de 1956, um mês depois da aprovação, pelo Congresso, da lei que determinava a transferência da capital, 300 pessoas já tinham chegado ao local onde seria a futura capital. Um mês depois, eram mil. No seguinte, 2 mil e 500. Em 1959, 60 mil, vindos de todos os cantos da imensa pátria, como descreveu Vinícius na Sinfonia da Alvorada.

A abordagem em profundidade de temas relacionados ao dia a dia da sociedade e do Congresso Nacional.

De segunda a sexta, às 3h, 7h20 e 23h