Direitos Humanos

Relatora propõe mudanças em projeto que permite acolhimento provisório de crianças por famílias na fila de adoção

Carla Dickson concordou que texto original pode atrapalhar adoção e vai apresentar substitutivo contemplando sugestões do governo

26/10/2021 - 14:56  

 

Especialistas apontaram problemas no Projeto de Lei 775/2021, que permite às famílias que se encontram na fila de adoção atuar como famílias acolhedoras e ter prioridade na adoção da criança ou adolescente acolhido, e elogiaram as mudanças propostas no texto pela relatora, deputada Carla Dickson (Pros-RN). O assunto foi debatido nesta terça-feira (26), em audiência pública na Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados.

Famílias acolhedoras cuidam da criança ou do adolescente até que eles retornem à suas famílias de origem ou sejam encaminhados para adoção, recebendo uma ajuda de custo do governo para isso. Trata-se de uma alternativa ao acolhimento institucional em abrigos ou casas-lares. Pela regra atual, as famílias acolhedoras não podem estar na fila de adoção

Promotor público no Ministério Público de Tocantins, Sidney Fiori destacou que o projeto de lei confunde os papéis de acolhimento – que é sempre temporário – com a adoção – que é definitiva.

A família acolhedora inclusive recebe capacitação para ajudar no processo de reintegração da criança em sua família biológica. O principal objetivo do acolhimento é essa reintegração à família de origem. Ele acredita que o projeto de lei pode prejudicar esse objetivo, além de oficializar o "furo" na fila de adoção.

Segundo o promotor, o conceito de acolhimento familiar "ainda engatinha" no Brasil – foi implementado a partir da Lei 12.010/09 –, e tem que ser fortalecido. "Infelizmente, o PL 775/21 está trazendo prejuízo a esse fortalecimento. Por enquanto, no Brasil, segundo estudos, menos de 5% das crianças estão em serviço de acolhimento familiar, ou seja, 95% ainda estão em instituições de acolhimento. Então a gente precisa melhorar, implantar nos municípios, expandir os serviços, e esse PL pode trazer severos prejuízos", alertou.

O promotor apresentou dez outras sugestões de modificação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) para facilitar a adoção. Entre elas, reduzir prazos legais para localização dos pais quando há abandono do bebê; retirar restrições para padrinhos afetivos adotarem; priorizar o acolhimento familiar em diversos dispositivos; assegurar a oitiva da criança e do adolescente no processo de reintegração familiar; e, se for muito improvável a reintegração, lastreada por estudos, reduzir prazos para o juiz colocar a criança em guarda para alguém que está na fila de adoção.

Reila Maria/Câmara dos Deputados
Audiência Pública - Famílias acolhedoras e adoção de crianças e adolescentes (PL 775/2021). Promotor Público Ministério Público de Tocantins, Sidney Fiori
Sidney Fiori: menos de 5% das crianças estão em serviço de acolhimento familiar

Novo texto
Carla Dickson adiantou que vai apresentar, na próxima semana, substitutivo ao projeto, contemplando as sugestões do Ministério Público e da Secretaria Nacional de Assistência Social do Ministério da Cidadania. Ela disse que os autores do projeto, os deputados General Peternelli (PSL-SP) e Paula Belmonte (Cidadania-DF), tinham o objetivo de agilizar o processo de adoção, mas a despeito da boa intenção, a proposta pode, ao contrário, atrapalhar o processo.

Em vez de apresentar parecer contrário ao projeto, ela optou por apresentar texto alternativo com medidas que podem fortalecer o acolhimento familiar e facilitar o processo de adoção.

"Pelo contrário, fazer do limão uma limonada, no sentido de transformar esse importante projeto de lei, que a princípio, como bem falou o senhor Sidney, atrapalharia um pouco o trâmite da adoção, em algo benéfico que, alterando o ECA, poderemos dar celeridade e agilidade e uma possibilidade de família para tantas crianças que estão esperando por aí", explicou.

A deputada Paula Belmonte concordou com as mudanças sugeridas ao projeto.

Sugestões do governo
A assessora da Secretaria Nacional de Assistência Social do Ministério da Cidadania, Juliana Pereira, apontou os mesmos problemas que o promotor no projeto de lei e elogiou os ajustes feitos no texto pela relatora. Embora não tenha sido apresentado formalmente pela relatora, o texto foi disponibilizado aos convidados.

Segundo Juliana, a maioria das crianças em acolhimento volta à família de origem e quem passa mais tempo em acolhimento são justamente aquelas crianças e adolescentes considerados “de difícil colocação em adoção", como grupos de irmãos que não devam ser separados, crianças acima de 8 anos ou com deficiências.

"Um dado do CNJ [Conselho Nacional de Justiça] mostrou que, em 2020, 77% do total de crianças e adolescentes disponíveis para adoção sem pretendentes eram adolescentes, ao passo que apenas 0,3% dos pretendentes aceitavam adotar um adolescente", disse.

Para melhorar esse cenário, ela sugeriu que a lei priorize no País o acolhimento familiar em detrimento do institucional, sobretudo para a faixa etária de adolescentes, o que hoje fica a critério do juiz. Com a mudança proposta, o juiz terá que justificar quando não encaminhar a criança ou adolescente para o acolhimento familiar.

Além disso, a assessora sugeriu, entre outros pontos, que o atendimento dos adolescentes acolhidos passe a contemplar, a partir dos 14 anos, ações para fortalecer a sua autonomia e ingresso no mercado de trabalho e, assim, prepará-lo para o desligamento do acolhimento.

Reila Maria/Câmara dos Deputados
Audiência Pública - Famílias acolhedoras e adoção de crianças e adolescentes (PL 775/2021). Secretaria Nacional da Família - Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Angela Vidal Gandra Martins
Angela Gandra: "O direito é das crianças, e não dos pais de adotar"

Direito das crianças
Secretária Nacional da Família no Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Angela Vidal Gandra reiterou que adoção e acolhimento são institutos diferentes, e que é preciso evitar a seletividade no processo de adoção. "O direito é das crianças, e não dos pais de adotar", disse. A secretária disse que vai encaminhar à relatora nota técnica, elaborada em conjunto com a Secretaria Nacional da Criança e do Adolescente, com sugestões para o texto.

A secretária-adjunta da Secretaria Nacional da Família, Fernanda Ramos Monteiro, esclareceu que a nota técnica sugere que o acolhimento familiar seja fortalecido, já que crianças que estão em instituições se desenvolvem de forma diferente das que estão em acolhimento familiar – estas conseguem ter fortalecimento de vínculo mais afetivo.

Apoio ao substitutivo
Juiz do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Sérgio Luiz Ribeiro concordou que o projeto original é contrário ao interesse da criança e do adolescente, enfraquecendo o serviço de acolhimento familiar e encorajando a burla da fila de adoção, e elogiou a proposta de substitutivo.

Promotor Público do Ministério Público de Minas Gerais, André Tuma também elogiou o texto por fortalecer os processos de "busca ativa" de famílias para adotar crianças e adolescentes considerados "de difícil colocação", por fortalecer o acolhimento familiar e por garantir o direito da informação para mulheres grávidas que pretendem entregar filhos para a adoção.

Este foi o segundo debate sobre esse projeto de lei na Câmara dos Deputados. O texto também foi discutido em abril na comissão externa que analisa políticas para a primeira infância, quando também foi criticado pela maior parte dos especialistas ouvidos.

Reportagem – Lara Haje
Edição – Roberto Seabra

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