Estudo do Ipea mostra que negros estão fora das carreiras mais valorizadas
Embora ocupem quase metade das vagas no serviço público, negros têm representação bem menor nos cargos mais altos e com melhor remuneração.
24/02/2014 - 11:51
O governo argumenta que a proposta que cria cotas para negros em concursos públicos (Projeto de Lei 6738/13) não servirá apenas para combater a desigualdade, mas também o racismo. Estudo do Ipea apresentado em fevereiro deste ano mostra que, apesar de os negros ocuparem quase metade dos empregos no setor público, eles estão ausentes nas carreiras mais valorizadas e recebem salários médios inferiores aos dos brancos.
A ministra da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, Luiza Bairros, que defendeu e ajudou a elaborar a proposta, explica que não é uma questão social ou de melhorar a educação. “A existência de cotas para negros vem em consequência de saber que na sociedade brasileira as pessoas brancas, mesmo quando pobres, são expostas a oportunidades na vida e no trabalho totalmente diferenciadas das oportunidades colocadas para as pessoas negras. O que tem de ser levado em conta em relação a isso é que no Brasil existe um racismo antinegro. Portanto, uma pessoa branca, ainda que seja pobre, opera com um valor simbólico da sua cor da pele que com os negros não acontece em momento algum, porque o racismo não permite.”
Um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea) mostra que, apesar de os negros ocuparem 47,4% dos empregos no setor público, o que equivale a quase metade das vagas existentes, a presença dessa parcela da população é muito reduzida nas carreiras mais valorizadas, como a de diplomatas, de auditores da Receita Federal e de defensores públicos. E a média salarial dos negros no serviço público equivale a apenas 86,2% dos rendimentos dos brancos, no caso de servidores que têm entre 9 e 11 anos de estudo, e a 74,5%, entre aqueles com 12 anos ou mais de estudo, o que demonstra que não há igualdade na ocupação dos cargos mais altos.
Para o presidente do Ipea, Marcelo Côrtes Neri, o estudo demonstra que, apesar de representados no setor público, os negros não têm as mesmas oportunidades, e, mesmo que seja possível resolver o problema da desigualdade sem cotas, como vem ocorrendo, isso demorará muito tempo.
Neri considera que o projeto deve levar a uma mudança de valores, pois fará com que estudantes negros acreditem que é possível subir na vida pelo setor público, ao verem exemplos de pessoas bem sucedidas que não estão apenas no ramo esportivo ou musical. “De um lado, o projeto possibilita que as pessoas ascendam a melhores postos de trabalho, mas, por outro, ele cria um modificador, um efeito modelo. Acho que isso foi importante nas experiências de ações afirmativas americanas. É um exemplo que você cria”, afirma.
Baixas expectativas
Especialistas em educação dizem que passar no vestibular ou num concurso público é muito mais uma questão de expectativa que de estudo. O sociólogo Brasilmar Ferreira Nunes, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), trabalhou com essa variável, e acredita que as expectativas entre pobres e a classe média no Brasil são uma grande barreira. “Quando uma pessoa não acredita que seja possível a alguém de sua situação chegar à universidade ou a um cargo na administração pública, isso simplesmente não acontece”, afirma.
Tamires Marques, que mora em Planaltina, uma cidade pobre nos arredores da capital, entrou na Universidade de Brasília (UnB) pelas cotas raciais. No entanto, ela não acreditava que poderia ter um lugar na universidade pública. “Para mim, a UnB era uma coisa bem impossível. Eu comecei a entrar numa onda de uma galera que estudava para concurso. Só que eu não tinha dinheiro para pagar um cursinho, e fiquei estudando numa biblioteca comunitária aqui na minha cidade. Depois disso passou um ano, as condições foram ficando bem difíceis. Eu decidi tentar uma bolsa para fazer um cursinho pré-vestibular e lá fui descobrindo que a UnB não era tão impossível assim. E aí fui estudando, fiz o vestibular e fui chamada”, relembra.
Embora não saiba ainda se vai fazer concursos, Tamires, que está se formando em Serviço Social, acredita que a entrada no setor público tem a mesma possibilidade transformadora que o ingresso na universidade teve em sua vida. “Eu estou me formando agora, aprendi muitas coisas nesses quatro anos de UnB, e foi uma oportunidade única. Eu pude romper um ciclo da minha família. É um orgulho para mim, e com certeza terei uma carreira profissional bem diferente da que teria se não tivesse entrado na UnB, e poderei proporcionar para os meus filhos coisas bem melhores.”
De certa forma, as cotas para negros em concursos, segundo o governo, são uma consequência das cotas em universidades. Agora que há mais negros formados, eles encontram uma nova barreira, na desigualdade de salários e na procura de empregos.
Reportagem – Marcello Larcher
Edição – Marcos Rossi