O ano de 2020 entrará para a história como um dos períodos mais duros para a humanidade no século XXI.

A pandemia causada pelo novo coronavírus (Sars-CoV-2) afetou sobremaneira a população mundial, deixando um rastro de mortos e infectados por Covid-19 — a enfermidade respiratória decorrente da contaminação pelo novo vírus. Em novembro de 2020, os números demonstraram mais de 1,2 milhão de óbitos e mais de 50 milhões de infectados.

A situação brasileira é preocupante. Dados oficiais do presente mês arrolam mais de 160 mil mortes relacionadas à pandemia, o que posiciona o Brasil como o segundo recordista em número de letalidades, atrás apenas dos Estados Unidos.

A evolução da pandemia atual revela que a população negra brasileira tem sido mais afetada do que outros grupos raciais. Há entre os óbitos a maior porcentagem de pessoas negras. Um estudo do Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde, da PUC-Rio, realizado a partir de dados disponibilizados pelo Ministério da Saúde até maio de 2020, verificou que cerca de 55% de pretos e pardos internados em estado grave em decorrência da Covid-19 morreram; entre pessoas brancas, a taxa ficou em 38%. A porcentagem foi maior entre pessoas negras do que entre brancas em todas as faixas etárias e também comparando todos os níveis de escolaridade.

Vários fatores ajudam a explicar o fenômeno. Basicamente, todos são ligados à desigualdade que nivela a população negra nas camadas mais baixas da pirâmide social e à lógica do racismo estrutural. O povo afro-brasileiro tem até hoje acesso mais precarizado aos sistemas de saúde público e privado. Parte da mesma população também apresenta maior incidência de comorbidades maltratadas, que potencializam a letalidade da Covid-19. A distribuição demográfica é outro fator de risco, à medida que parte considerável da população negra se aglomera em residências exíguas, insalubres, nas periferias dos centros urbanos.

As consequências da pandemia de 2020 para a população afro-brasileira nos estimula a pensar sobre as especificidades das condições de saúde dessas pessoas, além das desigualdades que afetam sua qualidade e expectativa de vida. Diante disso, a proposta desta exposição é

retratar os diversos aspectos que montam um panorama sobre a saúde da população negra brasileira, bem como apontar iniciativas de resistência e possibilidades de combate a um cenário tão preocupante e persistente.

Raphael Cavalcante
Curador

A pandemia e a população negra

A alta taxa de letalidade se torna o mais grave indicador na análise dos efeitos da pandemia sobre a população negra brasileira. Porém, em paralelo à saúde, outras esferas da vida de pretos e pretas também foram comprometidas.

Desemprego

De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Covid-19,coordenada pelo Instituto Brasileiro de Estatística e Geografia (IBGE) para medir as consequências da pandemia, em setembro de 2020, cerca de 11,3% da força de trabalho de pretos e pardos se encontrava desocupada, enquanto para brancos a proporção ficou em 7%. O comportamento estatístico tem ocorrido desde o início da série histórica do IBGE, iniciada em maio.

Uma das razões que ajudam a explicar os dados é que os postos de trabalho ocupados por pessoas negras foram os que mais diminuíram durante o isolamento social — em geral, trabalhos que exigem menor escolaridade, como o serviço doméstico e o comércio, e pagam os piores salários.

Os resultados da Pnad para o mês de setembro comprovam que a taxa de desocupação entre os trabalhadores com níveis mais baixos de escolaridade (da faixa sem instrução a ensino médio incompleto) soma 20,1%, enquanto a mesma taxa verificada nos níveis mais elevados (de ensino médio completo a pós-graduação) perfaz 15,4%.

Em relação à convergência dos fatores gênero e raça, as mulheres negras têm sido as maiores vítimas sociais da pandemia em um período que o desemprego no Brasil tem batido recordes históricos. Em 2019, a Pnad revelou que a taxa de desemprego entre mulheres negras era de 16,6%; em contrapartida, a mesma taxa entre homens brancos correspondia a um total de 8,3%. Dessa forma, considerando que os postos de trabalho ocupados por mulheres negras, incluindo postos sem carteira assinada, estão no rol dos mais afetados pela pandemia, tem-se o aumento da vulnerabilidade de um grupo já bastante vitimado.

Educação

A análise histórica dos dados referentes à educação no Brasil demonstra que ainda há uma distância entre a performance de negros e pardos em relação a brancos. Isso se traduz em menos anos de escolaridade para a população negra e, consequentemente, na ocupação de empregos de menor remuneração.

Os primeiros meses da pandemia provocaram a suspensão de aulas presenciais em todo o território, fazendo com que as unidades de ensino se adequassem à realidade da educação a distância. Para a escola pública isso se tornou um desafio ainda maior, considerando que muitos dos estudantes oriundos das camadas mais vulneráveis, em sua maioria negros e pardos, não possuíam acesso à internet.

Em paralelo, a suspensão das aulas presenciais também significou restrição alimentar para muitos estudantes, tendo em vista que a merenda escolar representa, em geral, a principal refeição daqueles mais vulneráveis. Nesse sentido, vários estados e municípios contornaram a situação a partir de complemento da renda familiar. O desafio que se coloca diz respeito ao retorno às aulas presenciais em um período sem vacinação em massa, em que a contaminação é uma ameaça à espreita.

Violência doméstica

Os relatos e denúncias sobre violência doméstica cresceram sensivelmente ao longo da pandemia. A permanência maior de mulheres em seus lares — seja pelo desemprego, seja por modificações na jornada de trabalho — aumentou a convivência com potenciais agressores. Em março de 2020, em comparação ao mesmo período de 2019, o Disque Denúncia (180) recebeu um aumento de 17,89%, uma tendência que se manteve nos meses subsequentes. O panorama é ainda pior para as mulheres negras, historicamente mais atingidas pela violência doméstica e pelo feminicídio.

Comunidades na linha de frente

O combate à pandemia trouxe grande mobilização a comunidades quilombolas, indígenas e periféricas, muitas vezes detentoras de assistência médica precarizada. Lideranças comunitárias assumiram o protagonismo de ações voltadas para a orientação e prevenção da contaminação, além de servirem como interlocutores das carências e necessidades presentes naquelas comunidades para o poder público.

Panorama da saúde da população negra

A condição global da saúde da população negra brasileira possui índices piores, em comparação ao estrato da população não negra. Trata-se de mais uma faceta da desigualdade racial, que compromete a qualidade e a expectativa de vida de negros e negras.

A raiz dos profundos prejuízos à saúde da população negra na contemporaneidade está fincada na história de um Brasil com passado colonial e de escravidão negra, que apesar de abolida, foi substituída por uma nova dinâmica de marginalização desse povo, que não pôde contar com políticas públicas reparadoras.

Desde a chegada dos primeiros navios negreiros, há quase 500 anos, negros e negras têm sido obrigados a ocupar as camadas sociais mais vulneráveis, fato que os expõe a carências diversas, como o acesso precarizado à assistência médica e ao saneamento básico. As condições socioeconômicas desfavoráveis da população negra também ajudam a explicar como jovens negros aparecem como as principais vítimas da violência urbana e do racismo institucional— questões de saúde pública.

Indicadores de
desigualdade

Alguns dos principais problemas de saúde da população negra

Hipertensão arterial e diabetes mellitus

A literatura científica demonstra a maior ocorrência de doenças crônicas específicas em determinados grupos étnicos. Fatores genéticos somados a fatores ambientais, relacionados à iniquidade de assistência à saúde e à inadequação nutricional, ajudam a explicar a taxa de prevalência da hipertensão arterial na população negra — cerca de 27% maior em comparação a brancos, de acordo com a Pesquisa Nacional de Saúde 2013.

O mesmo estudo aponta que, entre 2000 e 2012, houve o aumento gradual da taxa de mortalidade por diabetes na população negra. Enquanto, para cada 100 mil habitantes, a taxa de mortalidade, na população branca, passou de 23,9 para 22,7 (decréscimo); para a população negra, a taxa oscilou de 26,2 para 34,1.

Violência obstétrica

É o tipo de violência sofrida pela gestante no período pré-natal, durante o parto ou no pós-parto, nas dimensões física e/ou psicológica, em situações de assistência à saúde.

No artigo “A cor da dor: iniquidades raciais na atenção pré-natal e ao parto no Brasil”, de 2017, pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz apontaram como a violência obstétrica afeta mais as mulheres negras. O estudo evidenciou que as gestantes negras tiveram maior risco de pré-natal inadequado, falta de vinculação à maternidade, ausência de acompanhante e peregrinação para o parto. Em complemento, as mulheres negras também obtiveram menos orientações sobre o parto e possíveis complicações. A elas também foi ministrada menos anestesia local em casos de partos normais.

Saúde mental

A saúde mental da população negra também demonstra indicadores piorados em relação aos apresentados por outras etnias. A Pesquisa Nacional de Saúde 2013 evidencia que a fatia da população negra apresentou taxa de internação, a cada 10 mil habitantes, de 7,1, enquanto brancos pontuaram com 6,8. 

Outro fator preocupante diz respeito à alta taxa de suicídios entre jovens negros brasileiros. O documento “Óbitos por suicídio entre adolescentes e jovens negros 2012 a 2016", elaborado em parceria pelo Ministério da Saúde e pela Universidade de Brasília, aponta que os jovens negros correspondem a um dos estratos mais afetados pelo suicídio, sobretudo devido ao preconceito e à discriminação racial e também ao racismo institucional. Em 2016, o risco de suicídio foi 45% maior em adolescentes e jovens negros comparado aos brancos; naquele ano, a cada 10 suicídios em adolescentes e jovens, 6 ocorreram com negros.

Em 2016, a cada 10 suicídios em adolescentes e jovens, seis foram de negros