CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ

Sessão: 199.3.54.O Hora: 15:30 Fase: PE
Orador: LUIZ COUTO, PT-PB Data: 08/07/2013

O SR. LUIZ COUTO (PT-PB. Pela ordem. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, eu queria, em primeiro lugar, registrar nos Anais da Casa duas matérias. Uma é da revista ISTOÉ desta semana, intitulada Enrolação com o plebiscito: "Principais beneficiários das regras atuais, Parlamentares empurram consulta popular para 2014. Para não ficar mal com as ruas, Congresso ensaia votar uma minirreforma política. (...) Plebiscito não sai este ano. Já os itens menos polêmicos da reforma política podem ser colocados na pauta".

Essa é uma demonstração de que nós temos resistência em ouvir o povo, que pode dizer o que quer para a reforma política.

A outra matéria é da revista CartaCapital, intitulada Uma guerra particular: "A socióloga Vera Malaguti Batista alerta para o risco da expansão do 'Estado policial' e da gestão militar da vida dos pobres. (...) A polícia segue a lógica da guerra e da ocupação de territórios inimigos, avalia especialista".

Eu gostaria que essas duas matérias fossem registradas nos Anais desta Casa.

Sr. Presidente, faço, ainda, um pronunciamento sobre o segundo relatório nacional sobre violência homofóbica no Brasil e o número de denúncias de ações contra a população de transexuais, travestis, lésbicas, bissexuais e gays - a comunidade LGBT -, em todo o País, que cresceu 166%, em 2012. Esse relatório foi realizado pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da Republica.

O relatório afirma que o Brasil vive atualmente um movimento paradigmático em relação aos direitos humanos da população LGBT. Nesse sentido, o Governo Federal, por meio da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, reiterou o seu compromisso de promover e proteger a população LGBT ao dar continuidade à sistematização dos dados oficiais sobre violências homofóbicas no Brasil.

Conforme os dados, a Paraíba registrou o segundo maior índice do País em homicídios homofóbicos noticiados por 100 mil habitantes no ano passado. O Estado paraibano também foi o quarto do Brasil com maior quantidade de casos noticiados e o terceiro com maior proporção de denúncias de violência homofóbica: foram 2,5 para cada 100 mil habitantes em 2012.

Claro que não posso deixar de expressar a minha indignação pelo alto índice de mortes e violações contra a população LGBT no Estado da Paraíba, o qual represento. Infelizmente, a Paraíba foi considerada também, no mês de setembro do ano passado, a Unidade da Federação com o maior número de denúncias sobre violações contra a população LGBT, com 22 casos.

Afirma também o relatório que, entre as 203 violações denunciadas, o principal tipo registrado foi violência psicológica, com 80 casos, seguido por discriminação, com 76 casos; violência física, com 26 casos; negligência, com 10 casos; violência institucional, com 8 casos; e violência sexual, com 3 casos.

Comparado aos índices de outras regiões nordestinas, a Paraíba ficou atrás apenas do Estado de Alagoas, com relação ao índice de homicídios homofóbicos noticiados para cada 100 mil habitantes, porque no Estado alagoano foi verificado o índice de 0,58 homicídio homofóbico para a mesma proporção.

O relatório foca também nas legislações existentes em cada Estado brasileiro, e na Paraíba há três legislações estaduais e duas legislações municipais.

As três legislações estaduais são a Lei nº 7.309, de 2003, que proíbe discriminação em virtude de orientação sexual e dá outras providências; a Lei nº 7.901, de 2005, que institui o Dia Estadual da Diversidade Sexual da Paraíba; e a Portaria nº 41, de 2009, cujo art. 1º determina que todas as unidades que integram a Secretaria de Estado do Desenvolvimento Humano, na Capital e no interior do Estado, passem a registrar o nome social de travestis e transexuais em fichas de cadastro, formulários, prontuários e documentos congêneres, no atendimento prestado aos usuários dos serviços.

Uma das duas legislações municipais é a Portaria nº 384, de 2010, de João Pessoa, que estabelece o direito ao uso e tratamento pelo nome social aos travestis e transexuais, no âmbito do Governo Municipal. A outra é a Lei nº 466, de 2007, da cidade de Santa Luzia, que institui, no calendário oficial do Município, o Dia de Combate à Homofobia.

Contudo, Sr. Presidente, considero preocupante e abominável todo e qualquer tipo de violência contra os direitos humanos, como a violência contra a população LGBT. No Brasil, essa violência ainda existe em níveis alarmantes, o que exige que os Governos Federal, Estaduais, Distrital e Municipais desenvolvam políticas públicas eficazes e articuladas para o seu enfrentamento. A diferença não pode ser justificativa para a violência, muito menos conceitos, como o das relações naturais, podem justificar a existência de grupos especializados em crimes de ódio contra a população LGBT.

Não podemos deixar esses conflitos homofóbicos subsistirem em nosso meio. Não podemos deixar o preconceito racial, social ou sexual ainda persistir na nossa sociedade. Como defensor de direitos humanos, quero deixar meu alerta e minha defesa sem fim contra todo tipo de preconceito e discriminação existentes.

Era isso, Sr. Presidente. Solicito a V.Exa. que seja dada a devida divulgação a este discurso nos meios de comunicação desta Casa, inclusive em A Voz do Brasil.

O SR. PRESIDENTE (Mauro Benevides) - A Presidência cumprimenta o nobre Deputado Luiz Couto, que mais uma vez aborda o tema relacionado ao respeito integral aos direitos humanos na multiplicidade de suas facetas.

O ilustre representante da Paraíba demonstra, assim, inequivocamente, a sua fidelidade àquelas causas e, sobretudo, reclama a colaboração da sociedade e, mais do que da sociedade, do próprio Governo, para que se reprima essa violência praticada em todo o País.

Portanto, cumprimento o nobre representante da Paraíba, que é, sem dúvida, uma das figuras de maior expressão na Câmara dos Deputados na presente Legislatura.


MATÉRIAS A QUE SE REFERE O ORADOR

Enrolação com o plebiscito (Josie Jeronimo)

Principais beneficiários das regras atuais, parlamentares empurram consulta popular para 2014. Para não ficar mal com as ruas, Congresso ensaia votar uma minirreforma política.

Lançado no apogeu das manifestações, o projeto de uma reforma política popular atravessa um período de recesso. Após o alívio do clima quente das ruas, a base aliada desembarcou do projeto presidencial de ouvir a população sobre as mudanças necessárias no sistema de escolha dos representantes. O instinto de sobrevivência das legendas suplantou o espírito público redescoberto pela pressão dos protestos e os parlamentares se uniram na missão de empurrar para outubro de 2014 o plebiscito que poderia ser realizado em setembro deste ano. Para evitar a marca do descompromisso com a ira da população, o Congresso vai votar um arremedo de reforma política com os itens menos urgentes da pauta, deixando temas como financiamento público de campanha e reeleição para um plebiscito conjunto com o segundo turno das eleições do próximo ano.

O motim para enterrar o plebiscito foi liderado pelo PMDB. No papel de "sigla federação" desde o período militar, o partido cresceu sendo o guarda-chuva de todas as ideologias e governos. Foi justamente por saber explorar as brechas do sistema político que se tornou especialista em negociar apoios. O poderio atraiu a simpatia do empresariado. Nas eleições de 2012, o PMDB e seus candidatos angariaram R$ 663 milhões em doações, dinheiro que pelo atual método de seleção de governantes é sinônimo de votos. Campanhas baratas, com recursos limitados a um fundo público, não interessam, afirmam os peemedebistas.

O que mais preocupa os partidos, sobretudo o PMDB e setores do PSDB, é a possibilidade de o plebiscito resultar em uma lei mais dura para a contabilidade partidária, impedindo a primazia dos recursos empresariais nas eleições. "Você concorda que empresas financiem campanhas?", é a pergunta que o governo quer emplacar no plebiscito. Se a maioria da população votar sim, o resultado seria a elaboração de uma lei para criminalizar formalmente o caixa 2 de campanha. "Se aprovar isso em lei, acabou", resume o presidente do PMDB, senador Valdir Raupp (RO). Falando a língua do PMDB, Michel Temer saiu da reunião com líderes do Congresso na manhã da quinta-feira 4 anunciando o velório do plebiscito para este ano. Horas mais tarde, na pele de vice-presidente da República, ele recuou e divulgou uma nota em que disse demonstrar confiança na aprovação de uma reforma política com participação popular ainda neste ano. Por causa das idas e vindas, Temer foi alvo de piadinhas no café do plenário do Senado. "O senhor já ouviu a última entrevista do Temer? Cuidado para não se contradizer na sua", provocou o senador Eduardo Suplicy (PT-SP), brincando com o líder do PT no Senado, Wellington Dias (PI).

Eles não querem a reforma:

Financiamento Público de Campanha - O PT encampa a ideia, mas o PMDB não quer de jeito nenhum. Sem a ajuda das empresas, os partidos com candidatos a cargos majoritários e ampla militância levariam vantagem na arrecadação. E o PMDB concentrou sua força na atuação legislativa e de alguns fovernso estaduais. Nas eleições de 2012, o PMDB e seus candidatos gastam R$ 663 milhões na corrida eleitoral, cifra que jamais se repetiria com métodos alternativos de financiamento.

Sistema Político - PT, PMDB e PSCB têm ideias diferentes. Os tucanos empunham a bandeira do voto distrital para aproximar o País do padrão parlamentarista de governo. PT e PMDB enxergam no sistema de lista fechada a possibilidade de esmagar os partidos que dependem dos puxadores de voto para ampliar bancada na Câmara dos Deputados. PP, PR, PSC reagem. Assim, ninguém se entende e nada é decidido.

Fim das Coligações - Grande por sua capilaridade municipal, o PMDB usa seu generoso tempo de televisão para fazer acordos com outras siglas de todo o País, por isso se opõe à proposta. Em 2012, em 16 capitais o PMDB foi o partido com maior tempo de televisão. Com o fim das coligações, os partidos tendem à centralização nacional, característica que prejudicará o PMDB. As siglas menores temem desaparecer do horário eleitoral gratuito.

Fim da figura dos Suplentes do Senado - Atualmente, um em cada cinco senadores em exercício representa eleitores sem ter recebido nenhum voto nas eleições. O PMDB seria o partido mais afetado com o fim da substituição de senadores por suplentes. Na bancada de 20 parlamentares, seis são substitutos.

A oposição classificou o adiamento do plebiscito de "derrota" do Palácio do Planalto, mas o governo acredita estar numa zona de conforto. Aliados da presidenta afirmam que 68% da população apoia o plebiscito e quem ficará em maus lençóis com a postergação para 2014 é o Congresso e setores da oposição. Para eles, os movimentos sociais ligados a partidos como o PT e o PCdoB que foram barrados nas ruas poderão engrossar novos protestos. "A população, de inúmeras formas, manifestou uma crise de representatividade, foi às ruas e disse: você não me representa. Então, o Congresso deve tomar essas decisões. O debate vai ser feito agora dentro do Congresso. Temos que aguardar e respeitar", disse a ministra de Relações Institucionais, Ideli Salvatti. O principal argumento usado pelo PMDB para adiar o plebiscito é a falta de tempo. Na verdade, o prazo mínimo de 70 dias definido pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para a organização da consulta popular foi a desculpa que os parlamentares do partido precisavam para defender publicamente uma estratégia que já era articulada nos bastidores. Depois da chancela do TSE, não faltaram discursos inflamados sobre o "tempo exíguo" para a organização da votação. "O sentimento da bancada é de que a ministra Cármem Lúcia enterrou o plebiscito. Não adianta mentir para o povo. Não tem tempo hábil", afirma o deputado Danilo Forte (PMDB-CE).

Como o ano que vem é ano eleitoral e os parlamentares não querem ficar mal com as ruas quando suas reeleições estarão em jogo, um plano "B" foi tirado da cartola. Convocados pelos presidentes do Senado e da Câmara, os peemedebistas Renan Calheiros (AL) e Henrique Eduardo Alves (RN), parlamentares ensaiam votar uma minirreforma. Na pauta estão o fim do voto secreto no Congresso, já votado na CCJ, a coincidência das eleições municipais e federais e o fim das coligações partidárias. Como, nos últimos dez anos, muito se falou e pouco se votou para alterar o atual sistema político-eleitoral, é prudente aguardar o desenrolar dos fatos. Enquanto isso, a guerra entre governo e Congresso segue com movimentos curtos e agressivos. Enquanto o Planalto transfere para os parlamentares a responsabilidade do engavetamento do plebiscito, os partidos da base respondem e cobram da presidenta Dilma Rousseff medidas administrativas para enxugar o número de ministérios. Sobre este tema, a maioria das legendas, obviamente, joga para a plateia. Como se na hora de decidir que cargos serão cortados e os presidentes dos partidos governistas fossem oferecer os seus.


Uma guerra particular

A socióloga Vera Malaguti Batista alerta para o risco da expansão do "Estado policial" e da gestão militar da vida dos pobres

por Rodrigo Martins - publicado 08/07/2013 10:13

Fabiano Rocha / Extra / Ag. O Globo

Protesto no Rio de Janeiro


A polícia segue a lógica da guerra e da ocupação de territórios inimigos, avalia especialista

Os espetáculos de truculência e despreparo das polícias estaduais na repressão às manifestações, somados à barbárie cotidiana nas favelas e periferias das grandes cidades, fizeram ressurgir a bandeira da desmilitarização das polícias. Uma proposta muito distante da realidade, lamenta a socióloga Vera Malaguti Batista, secretária-geral do Instituto Carioca de Criminologia e professora da Universidade Cândido Mendes. Antes disso, sugere a especialista, é preciso interromper é a expansão do chama de "Estado de polícia". "Precisamos parar de acreditar que vamos resolver os problemas do Brasil com mais polícia e repressão", diz Batista, organizadora do livro Paz Armada, Criminologia de Cordel, lançado em 2012 pela Editora Revan. Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista.

CartaCapital: Como a senhora avalia o comportamento das polícias durante os protestos do último mês?

Vera Malaguti Batista: A polícia se comportou como costuma se comportar. Só que dessa vez o alvo da truculência era diferente, o público era outro. Os manifestantes eram, em sua maioria, jovens de classe média e brancos. Cada vez que um ônibus é incendiado na favela, o episódio é tratado pela mídia como um ato de vandalismo ou terrorismo. Mas por trás daquele veículo em chamas, quase sempre há um episódio anterior de violência policial, um assassinato. Trata-se de uma forma de protesto desesperada. A classe média se deparou nas ruas com uma forma de atuação policial normalmente dirigida aos pobres, aos moradores de bairros periféricos. Não há nada de novo.

CC: O que explica essa cultura da truculência?

VMB: O coronel Carlos Magno Nazareth Cerqueira, comandante da PM do Rio de Janeiro nos dois governos de Leonel Brizola e assassinado em 1999, dizia que o trabalho policial no Brasil ficava entre o saber jurídico e o saber bélico. Este último está subordinado à lógica das Forças Armadas, na qual o objetivo de uma ação é sempre conter ou eliminar um inimigo. Mas as técnicas e os métodos de policiamento deveriam ter um corpo teórico à parte, o mais afastado possível do paradigma bélico. Não estamos em guerra tampouco enfrentando inimigos nas ruas. A questão central é: a quem a polícia deve servir? Nos Estados Unidos, Itália, França, Alemanha, Cuba, as técnicas e métodos da polícia compõem um corpo teórico bastante distinto da teoria bélica. Há manuais internacionais de controle de distúrbios, discussões sobre o uso legítimo e o uso excessivo da força, padrões de abordagem.

CC: E no Brasil?

VMB: Aqui, a lógica é outra: ocupação do território inimigo. Na medida em que a criminalidade foi caminhando para o centro da política e a mídia começou a criar certa histeria nacional, as pessoas passaram a aceitar como normais e depois a aplaudir ações de guerra. Os mesmos cidadãos que criticavam a violência da ditadura passaram a justificar certos abusos da polícia no regime democrático. A ordem é partir para cima de qualquer forma. Se o policial matar, não tem galho. Registra o homicídio como auto de resistência. Ao mesmo tempo, de forma maluca, há uma expansão do número de policiais. Outro dia vi o governador do Rio, Sergio Cabral, todo orgulhoso dizendo que ele colocou nas ruas 6 mil novos policiais por ano, enquanto no passado não passavam de 500 por ano. Eu considero isso uma notícia apavorante. É o que eu chamo, no meu livro, de Estado de polícia. Mas a classe média ainda não se deu conta disso.

CC: Em recentes protestos na periferia de São Paulo e no Complexo da Maré, no Rio, alguns cartazes alertavam: "A polícia que reprime na avenida é a mesma que mata na favela".

VMB: Tome o exemplo do massacre na Maré. A ação de meia dúzia de pequenos traficantes e a morte de um sargento do Bope, a tropa de elite da polícia fluminense, deu uma espécie de carta de carta branca para a polícia promover uma chacina na favela. Isto, sim, foi uma verdadeira ação terrorista. Revela um despreparo total, uma tropa enlouquecida, disposta a tudo. E a mídia incentiva este tipo de postura. Cria slogans como "combate ao crime", "guerra às drogas", "batalha contra o crack". Hoje, São Paulo tem um efetivo de 100 mil policiais. O Rio tem mais de 60 mil. Todos os anos, os diferentes governos jogam nas ruas milhares de trabalhadores armados com pouca ou nenhuma formação. E há uma enorme plateia aplaudindo essa política, demandando mais truculência. Um dos grandes equívocos dos governos do PT foi ter permitido, e até incentivado, a expansão do Estado de polícia. Como diz o historiador Joel Rufino dos Santos, o que precisamos ser: guardiões da ordem ou dos direitos humanos?

CC: Ter mais policiais nas ruas é um problema?

VMB: Sem preparo, sim. É preciso pagar melhores salários, melhorar a formação dos policiais. Aquele homem fardado, no meio de uma multidão enfurecida, adestrado para a guerra e sem saber como lidar com civis, também vive um grande dilema.

CC: É o caso de levantar a bandeira da desmilitarização da polícia, como alguns manifestantes têm sugerido?

VMB: Estamos tão distantes disso... A primeira coisa que precisamos interromper é a expansão do Estado de polícia. Parar de acreditar que vamos resolver os problemas do Brasil com mais polícia e repressão. Esse é o consenso da sociedade hoje. Precisamos de muitas prisões, penas mais duras para os criminosos. Em algum momento essa política de encarceramento em massa vai ruir, não tem como se sustentar. Antes de colocar mais policiais nas ruas, é preciso repensar o que queremos. Viver num Estado de polícia ou num Estado de direito? São coisas antagônicas. Como ressalta o jurista argentino Eugenio Raúl Zaffaroni, 'o estado de direito é concebido como o que submete todos os habitantes à lei e opõe-se ao estado de polícia, onde todos estão subordinados ao poder daqueles que mandam'. Hoje, não tenho dúvidas de que vivemos neste segundo cenário.

CC: A senhora é uma crítica ferrenha das Unidades de Polícia Pacificadora no Rio, que contam com ampla aprovação da população, segundo pesquisas. O que há de errado no modelo?

VMB: É um projeto de alta concentração de forças militarizadas em áreas pobres. Se fosse um programa para a segurança pública do Rio de Janeiro, ele não poderia ser direcionado só para as favelas. A UPP é uma gestão policial da vida dos pobres. Transforma a polícia como principal política pública, acima de todas as outras. Não vejo dessa forma. As pessoas se sentem seguras quando têm transporte, alimentação, limpeza urbana. Além disso, esse modelo de controle territorial está inserido num paradigma bélico. Segurança pública não é guerra tampouco disputa territorial. A UPP parece uma invenção de Sergio Cabral ou do seu Secretário de Segurança Pública, mas o modelo foi testado em outros lugares do mundo e fracassou. O projeto foi vendido aqui como panaceia, uma espécie emplastro Brás Cubas, destinado a curar todos os males da humanidade, nos delírios do célebre personagem de Machado de Assis.

CC: Onde mais esse modelo foi adotado?

VMB: Em Medellín, os pesquisadores do Observatorio de Seguridad Humana têm uma série de estudos e estatísticas que revelam os equívocos desse modelo de ocupação militarizada em áreas pobres da Colômbia. O geógrafo Milton Santos ressalta que a aposta na "recuperação de territórios" remete ao conceito bélico norte-americano e israelense de ocupação de territórios estrangeiros. Sim, porque os governos dos Estados Unidos e de Israel não têm coragem de impor esse mesmo modelo dentro de casa, para a sua própria população.

CC: Vende-se a ideia de que a UPP é um modelo de policiamento comunitário.

VMB: UPP não é policiamento comunitário, é uma tomada de território por forças militarizadas. Algo muito semelhante ao que ocorre na Palestina, no Iraque, no Afeganistão. O coronel Nazareth Cerqueira foi um dos primeiros a implantar o policiamento comunitário na América Latina nos anos 1980. O projeto tinha no horizonte a ideia de o policial estar próximo, mas não metendo o pé na porta. O oficial deveria ser acessível, próximo para atender às demandas da população. Mas nunca para impor sua disciplina, o protagonista era a população.

CC: O que é a vida em uma favela "pacificada"?

VMB: O tipo de atuação policial que se faz nas favelas ocupadas pela polícia no Rio só poderia ser feita na zona sul da cidade caso o governo decretasse "estado de sítio". Há toques de recolher, abordagens ostensivas, invasão de domicílios sem mandado judicial, a proibição de tudo. Os moradores do morro do Cantagalo costumam reclamar que os bares de Ipanema ficam abertos a noite toda, mas as biroscas da favela têm horário para fechar. Para fazer uma festa em casa, o morador de lá tem de pedir autorização. Se fosse uma experiência de policiamento comunitário, como cinicamente costumam dizer, as intervenções deveriam ocorrer em todo o bairro de Copacabana, não apenas nas favelas dali.