CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ

Sessão: 1102/17 Hora: 10:22 Fase:
Orador: Data: 22/08/2017



DEPARTAMENTO DE TAQUIGRAFIA, REVISÃO E REDAÇÃO


NÚCLEO DE REDAÇÃO FINAL EM COMISSÕES


TEXTO COM REDAÇÃO FINAL


Versão para registro histórico


Não passível de alteração



COMISSÃO DE TRABALHO, DE ADMINISTRAÇÃO E SERVIÇO PÚBLICO EVENTO: Seminário REUNIÃO Nº: 1102/17 DATA: 22/08/2017 LOCAL: Plenário 12 das Comissões INÍCIO: 10h22min TÉRMINO: 12h57min PÁGINAS: 56


DEPOENTE/CONVIDADO - QUALIFICAÇÃO


TAYA CARNEIRO - Mestranda em Comunicação; ativista transexual; pesquisadora sobre empregabilidade de pessoas trans no Distrito Federal; e membro da União Libertária de Travestis e Mulheres Transexuais - ULTRA, do Distrito Federal. DANIELA CARDOZO MOURÃO - Cogestora do programa de prevenção à violência nos campus da Universidade Estadual Paulista - UNESP. FRANCISCO MORAES DA COSTA MARQUES - Assessor da Diretoria de Políticas de Educação em Direitos Humanos e Cidadania da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão do Ministério da Educação. RÉGIS VASCON - Advogado e Guarda Municipal ÂNGELA GUIMARÃES - Presidenta Nacional da União de Negros pela Igualdade - UNEGRO. ANDREY LEMOS - Presidente Nacional da União Nacional LGBT - UNALGBT. HELIANA HEMETÉRIO - Historiadora da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Travestis e Transexuais - ABGLT. IEDA LEAL - Vice-presidente da Central Única dos Trabalhadores - CUT.


SUMÁRIO


Seminário LGBTfobia e Racismo no Mundo do Trabalho, para debate de mecanismos legais de promoção da igualdade de acesso a trabalho digno e de combate das diferentes formas de discriminação.


OBSERVAÇÕES


Houve exibição de imagens. Houve intervenções inaudíveis.




O SR. PRESIDENTE (Deputado Orlando Silva) - Bom dia a todos e a todas. Agradeço a presença dos nossos convidados.

Declaro abertos os trabalhos do presente seminário, convocado em razão da aprovação do Requerimento nº 250, de 2017, pela Comissão de Trabalho, Administração e Serviço Público, da Câmara dos Deputados.

O requerimento, de minha autoria, solicitou a realização deste evento para discutir a LGBTfobia e o racismo no mundo do trabalho, os mecanismos legais de promoção da igualdade de acesso a trabalho digno e de combate das diferentes formas de discriminação.

Quero convidar para tomar assento à mesa a Sra. Taya Carneiro, mestranda em Comunicação, ativista transexual e pesquisadora sobre empregabilidade de pessoas trans no Distrito Federal (palmas); a Sra. Daniela Cardozo Mourão, Cogestora do Programa de Prevenção à Violência nos Campi da Universidade Estadual Paulista - UNESP (palmas); o Sr. Francisco Moraes da Costa Marques, Assessor da Diretoria de Políticas de Educação em Direitos Humanos e Cidadania, da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão, do Ministério da Educação (palmas); a Sra. Ângela Guimarães, Presidente Nacional da União de Negros pela Igualdade - UNEGRO (palmas); e o Sr. Régis Vascon, advogado e guarda municipal (palmas).

Registro que o Prof. Lucas Solano ainda não se encontra presente. Ele será convidado para tomar assento à mesa e participar do seminário logo que chegar.

Antes de passar a palavra aos convidados, peço a atenção dos senhores presentes para as normas que vou expor a seguir.

O expositor disporá de até 15 minutos para sua explanação sobre o tema proposto, não podendo ser aparteado.

Os senhores interessados em interpelar o expositor deverão inscrever-se previamente junto à mesa de apoio.

Após o encerramento da exposição, os inscritos para interpelar os expositores poderão fazê-lo estritamente sobre o assunto da exposição, pelo prazo de 3 minutos, tendo o interpelado igual tempo para responder, facultadas a réplica e a tréplica pelo mesmo prazo, vedado ao orador interpelar quaisquer dos presentes.

Esclareço que esta reunião está sendo gravada. Por isso, solicito aos senhores e senhoras que falem ao microfone e declinem o nome quando não forem anunciados por esta Presidência.

Eu compus a Mesa até para colaborar com a TV Câmara e termos uma imagem mais bonita. (Riso.)

Faço, em breves palavras, uma abertura simbólica deste seminário. Evidentemente, o requerimento é autoexplicativo acerca do nosso objetivo ao realizar este seminário.

Eu fiz questão de requerer que o seminário fosse gravado e que fosse feita a degravação das intervenções dos senhores, para que nós possamos, após a revisão de cada um dos expositores, publicar a sistematização do evento.

Sabemos que o Brasil é marcado por preconceito, por discriminação, por desigualdade em muitos planos. A desigualdade de gênero é evidente e tem sido enfrentada, talvez, com mais desenvoltura, na medida em que conquistou mais políticas públicas. Isso tem permitido ao Brasil enfrentar questões que vão do mercado de trabalho à violência contra a mulher, obtendo resultados relevantes.

O combate ao racismo, que vem da resistência dos negros à época da escravidão, afirma-se, ainda hoje, nas mais diversas manifestações de combate ao preconceito e à discriminação e segue dando passos que considero importantes, segue tendo conquistas que considero relevantes. Cito, por exemplo, as ações afirmativas que têm ensejado a ocupação, a pintura de negros nas universidades brasileiras, assim como as leis e conquistas no Supremo, que têm garantido a afirmação da luta popular que os negros e negras do Brasil desenvolveram ao longo do tempo.

Considero que o combate à LGBTfobia é um desafio no Brasil. Ainda carecemos dar mais passos no sentido de constituir a cidadania plena, respeitando a diversidade em nosso País.

O mercado de trabalho é dos espaços onde a discriminação se dá com mais força. As seguidas pesquisas que são publicadas evidenciam que, entre um homem e uma mulher realizando o mesmo trabalho, a mulher sempre tem uma remuneração menor. Se o recorte for racial, entre um homem branco e um homem negro, o homem negro sempre tem um prejuízo na remuneração, como se dá no plano das mulheres. Então, esse é um ambiente que ainda carece de enfrentamentos, para que possamos produzir igualdade de fato e garantir o respeito à diversidade no nosso País.

Considero que o tema da LGBTfobia merece um olhar na sua particularidade. Esse é o sentido deste seminário da Comissão de Trabalho, uma Comissão afeita, portanto, à temática da empregabilidade, uma das que devem ser apontadas aqui.

Então, quero abrir este evento agradecendo, antecipadamente, a colaboração de todos os convidados que se deram ao trabalho de vir até aqui. Peço aos amigos que estão aqui que nos ajudem no esforço de publicar esta iniciativa, porque isso pode servir não só para difundir as ideias, mas para estimular que outras iniciativas que tenham o mesmo sentido possam se dar no Brasil, seja em Parlamentos estaduais ou municipais, seja no âmbito do Poder Executivo. Isso também pode servir de elemento de reflexão para universidades e entidades da sociedade civil. Dessa maneira, poderemos colaborar para que o nosso País, um dia - quem sabe não está muito longe -, seja livre de toda e qualquer forma de preconceito e de discriminação.

Passo a palavra, inicialmente, à Sra. Taya Carneiro, mestranda em Comunicação, ativista transexual e pesquisadora sobre empregabilidade de pessoas trans aqui em Brasília.

Informo que este evento está sendo transmitido ao vivo pela Internet, na página da Comissão do Trabalho e também na minha página pessoal do Facebook.

A SRA. TAYA CARNEIRO - Bom dia a todos e todas. Meu nome é Taya. Eu faço parte da União Libertária de Travestis e Mulheres Transexuais - ULTRA, do Distrito Federal.

Nós estamos fazendo uma pesquisa em parceria com o Instituto Brasileiro de Transmasculinidade do Distrito Federal - IBRAT-DF, com a Corpolítica, uma coletiva também daqui, e com a Universidade de Brasília, para mapear, não quantitativamente, mas qualitativamente, a discriminação e os impedimentos de acesso das pessoas trans no mercado de trabalho do Distrito Federal.

Assumimos esse desafio porque, principalmente, não existem pesquisas desse tipo dentro do Brasil. As pesquisas de dados oficiais, do Censo do IBGE, não contêm recortes de identidade de gênero. E, para fazer políticas públicas de empregabilidade, precisamos de pesquisas, precisamos saber qual é a situação dessas pessoas.

O nosso desafio maior era saber se iríamos aplicar o mesmo tipo de metodologia empregada para qualquer população da sociedade. Nós decidimos que não iríamos fazer isso, mas que iríamos trazer das próprias pessoas o que elas queriam dizer sobre a relação delas com o mercado de trabalho. (Pausa.)

(Segue-se exibição de imagens.)

Esta é a equipe de pesquisa: Fernanda Martinelli, da UnB; eu; Maria Léo, da Corpolítica; e Bernardo Mota. Temos um financiamento da Embaixada da Suíça no Brasil. Nossos apoiadores são a UnB e a ULTRA.

Já falei um pouco sobre nossa perspectiva. A nossa abordagem consiste de longa entrevista. O que significa isso? Nós estamos fazendo entrevistas de quase 4 horas com as pessoas, para entender qual é a relação delas com a vida, a opressão estrutural que afeta as pessoas trans no Brasil - o que tira as pessoas trans da família, o que tira as pessoas trans da escola, o que tira as pessoas trans do sistema de saúde - e como isso se relaciona com o mercado de trabalho.

Já temos alguns dados, por exemplo, da Associação Nacional de Travestis e Transexuais - ANTRA, que mostram que 95% das mulheres trans estão na prostituição. Então, o que leva essa população a só ter a prostituição como fonte de renda e de cidadania?

Surgiram estas identidades de gênero nas entrevistas: homens trans; pessoas não binárias; mulheres transexuais ou trans; e travestis. Como nós somos poucos e estamos fazendo com essa metodologia mais longa, essa não é uma pesquisa que nos dá dados quantitativos. Estamos buscando entender mais profundamente qual é a relação das pessoas. Então, surgiram quatro mulheres transexuais, cinco homens trans e duas pessoas não binárias ainda, porque são dados preliminares.

Há várias orientações sexuais. A maior parte das pessoas é negra. Quanto à idade, são pessoas jovens. Então, procuramos saber o que as pessoas pensam para o seu futuro, qual relação têm com o mercado de trabalho agora e qual a sua perspectiva de vida.

Religião. A maioria optou por não seguir uma religião porque teve uma relação muito discriminatória dentro da própria religião.

Algo que descobrimos nesta pesquisa sem que tivéssemos intenção foi que grande parte das pessoas trans entrevistadas - entrevistamos 22 pessoas trans - não eram de Brasília. Então, houve uma enorme migração. Eu estou apresentando dados de dez pessoas que moram em várias regiões do Distrito Federal. Dessas dez, que não são o universo total, a maior parte veio para Brasília para viver a própria identidade de gênero que não encontrava na cidade de origem. Então, Brasília é um ponto de migração de pessoas trans.

Descobrimos que esses espaços, em especial, são importantes para tirar as pessoas do acesso aos serviços, e isso impacta o mercado de trabalho, principalmente quando elas estão no universo da transição. O momento da mudança de gênero, também entendida como transformação, é muito delicado, especialmente se acontece quando se está dentro do mercado de trabalho. Algumas pessoas aqui vão comentar sobre isso, principalmente no que se refere ao ambiente da família e dos relacionamentos amorosos, das instituições de ensino, das redes sociais e dos banheiros públicos.

Na transição, que é o momento mais determinante no contexto do trabalho, ocorrem mudanças no corpo e nas relações pessoais. A enorme incompreensão a respeito da mudança corporal às vezes causa alguma rejeição, como veremos nos relatos aqui.

Também descobrimos que não existe uma fórmula. Temos a ideia de que mulher transexual tem que botar peito, tem que fazer cirurgia, mas isso não apareceu na pesquisa. Apareceram diversas formas de ser trans dentro da pesquisa.

Estes são alguns dos relatos sobre a transição. Os nomes são todos fictícios, para preservar a identidade das pessoas:

Antes eu não queria usar faixa, agora quero usar binder, mas não quero tirar os meus peitos. É... Ainda estou me descobrindo, aos poucos, entendeu?” - disse um homem trans. “A minha transição foi mais psicológica. Eu não tomo hormônio, eu só deixei meu cabelo grande. Eu sempre tive este corpo aqui.

Estou apresentando esses relatos rapidamente porque há muitos.

Na família e nos relacionamentos amorosos, descobrimos enorme abandono, expulsão do ambiente familiar e violência. Isso apareceu em quase todas as entrevistas que fizemos. Houve muitos discursos religiosos discriminatórios, como vamos mostrar nos relatos, e também a argumentação de que pessoa trans não se mostra, pessoas trans se esconde. O que isso significa? Significa que as pessoas, dentro da própria família, não podiam se demonstrar trans. Como não podiam se assumir para a própria família, elas se disfarçavam para poderem viver naquele ambiente sem serem expulsas.

Estes são alguns dos relatos.

Meu irmão ficou com raiva e deu um chute na minha perna que meu joelho se deslocou. Aí eu só caí. Aí eu levantei e, tipo, minha mãe só falou: “Sai da minha casa, eu não quero você na minha casa”. Então, eu só fui ao quarto, enchi minha mochila de roupas e fui.

Esse foi o relato de um homem trans, sobre o momento em que ele foi expulso de casa.

A Jaqueline relatou: “Meu irmão mais velho foi a única pessoa que me deu uma surra por eu ser uma mulher trans. E eu não falo com ele até hoje”.

A Carla, que é uma mulher negra que mora no Entorno de Brasília, na periferia, que tem uma história de vida superdifícil e que foi bem representativa das outras pessoas negras que também entrevistamos, relatou:

Daí foi quando meu primo tentou me matar por transfobia. Ele falava: “Eu vou te matar, seu viado desgraçado”. A gente pode ser a mulher mais bonita do mundo que o pessoal vai chamar a gente sempre de viado. E era assim que ele falava, com a faca no meu pescoço.

O Gabriel, que é um homem trans, disse:

Um dia minha mãe acordou discutindo comigo, e aí ela começou a me chamar pelo meu antigo nome de registro sem parar e falou que eu estava possuído... Aí eu falei que ia me mudar de casa, e me mudei.

Enfim, há vários registros ainda. Este é muito importante também: “Ele (o pai) falou pra mim que eu era filha do capeta porque ele tinha feito um menino, e não uma menina. Hoje em dia a gente não se fala. Não temos nenhum tipo de relação”.

Aparecem muitos relatos de casos em que religiosos expulsam as pessoas trans de suas famílias, iniciando-se, assim, o ciclo de marginalização. Estas pessoas trans, às vezes, ficam nas ruas, sem ter onde morar. Isso se reflete no mercado de trabalho depois.

Dentro das instituições de ensino, apareceram muitos problemas em relação a banheiros. Em escolas públicas e em escolas particulares, as pessoas, em geral, tinham que utilizar o banheiro de deficientes ou o banheiro dos professores porque não eram aceitas nem no banheiro masculino, nem no banheiro feminino. Sofriam muita violência física e psicológica por parte de colegas e de professores e não tinham o reconhecimento de sua identidade de gênero. As pessoas não tinham sua identidade de gênero - feminina ou masculina - nem seu nome social reconhecidos. Muitos professores se recusavam a dizer o nome social na chamada, o que levava as pessoas a saírem da escola.

Nós ouvimos muitos relatos, inclusive de que a escola era um ambiente ainda pior do que o mercado de trabalho e que, por isso, as pessoas fugiam para o mercado de trabalho.

Mais um relato:

Apanhei muito na escola quando era criança. Era muito reprimida - “Fale igual a homem! Ande igual a homem! Aja como homem! Vire homem, porra!” -, tanto que hoje em dia sou muito retraída. Por isso, eu não tenho o poder da palavra. Quando estou num grupo, tenho muita coisa para falar, mas não tenho coragem de levantar a mão.

Ou seja, a pessoa já introjeta toda aquela questão da opressão.

Eu esperava que o mercado de trabalho fosse ser mais tranquilo que o ensino médio, e foi. O que eu sofri no mercado de trabalho não passou nem perto do que eu passei nos 3 anos de ensino médio.

Nas redes sociais também vimos muitas perdas de amizade e a solidão das pessoas, o que nos mostrou como existe essa opressão estrutural contra as pessoas trans. Quando as pessoas faziam a transição, elas perdiam as amizades e acabavam ficando sozinhas. Essa mulher trans negra de que eu falei morava numa casa muito simples - eu que fiz a entrevista com ela - no Entorno de Brasília e ela não saía de casa porque ela morria de medo de encarar as pessoas na rua. Em alguns momentos, ela não conseguia nem procurar emprego por ter muito medo de a sociedade praticar violência contra ela.

Descobrimos também muitas redes de solidariedade entre homens trans também.

Basicamente, dos meus amigos daquela época, não restou nenhum, porque não conseguem me acompanhar. Às vezes, eu mesma me afasto. Eu prefiro, sabe? Porque ficar dizendo todo dia: “Eu não sou isso, eu sou aquilo”, e a pessoa insiste em te chamar disso... Sabe? Ao mesmo tempo em que eu queria encontrar apoio, estar mais perto das pessoas trans, eu não conseguia sair de casa, eu mal saia para trabalhar. Uma transição bem sozinha.

O Centro de Referência Especializado de Assistência Social - CREAS da Diversidade, de Brasília, também apareceu em muitas entrevistas como um apoio, prestando assistência social e psicológica:

Para não dizer que não tive apoio de nada, eu tenho o psicólogo do CREAS. E a assistente social que me acompanha de vez em quando me manda mensagem e pergunta como eu estou. Esses foram os dois apoios que tive em toda a minha transição até hoje.

Quanto aos banheiros públicos, houve muito constrangimento e complicações na saúde ocorridas pelo fato de as pessoas não conseguirem acessá-los. Elas tinham muitos problemas de saúde porque ficavam prendendo muito a urina. Elas evitavam acessar banheiros públicos e esperavam chegar a casa para irem ao banheiro. Há muitos relatos sobre isso também: “Até hoje eu entro correndo no banheiro. Isso dói bastante, é péssimo para mim”.

Em relação às ruas, ao espaço público, é a mesma coisa: ocorre reclusão e afastamento da rua. “Eu lembro que eu mudava o meu trajeto todo para não passar perto da quadra de futebol, onde havia muita concentração de homens, porque eu sempre era muito xingada”.

No que se refere ao acesso ao emprego e à renda, descobrimos muitas barreiras culturais no ambiente de trabalho que impedem a presença e a circulação de pessoas trans. Por decorrência disso, as pessoas trans, a fim de conseguirem acessar o trabalho, recorrem a processos de remodelação subjetiva e corporal, que muitas vezes são violentos para com elas, de modo que consigam se adaptar a tais espaços.

O que isso significa? Em muitos momentos, as pessoas trans escondem a própria identidade. Isso pode ocorrer por meio da passabilidade, quando a pessoa trans chega a um nível da transição em que é confundida com uma pessoa cisgênero, ou seja, com uma pessoa não trans. Por exemplo, eu chego ao nível de parecer tanto com uma mulher cisgênero que as pessoas não me veem como uma pessoa trans. E a ocultação da própria identidade também acontece por meio da regressão, que é o cisplay, palavra que colocamos ali, ou seja, eu, que sou uma mulher trans, apresentar-me como homem em uma entrevista e às pessoas no trabalho para que elas me aceitem. Isso acontece muito, principalmente com as pessoas trans de baixa renda. A passabilidade, a transição e o cisplay são muito importantes.

Quanto à apresentação em currículos e entrevistas, há o seguinte depoimento:

Quando eu fiz a entrevista eu fiz a entrevista de (diz o nome de registro relacionado ao gênero masculino), eu não fiz a entrevista de Taís. Porque foi um conselho que uma pessoa tinha me dado, que se eu quisesse um emprego: “Vai primeiro de homem, depois você se transforma lá dentro”. Eu tive que me vestir de homem na entrevista, né, eu fui de boné, tudo, pra mim passar na entrevista porque senão eu não ia passar.

Trata-se de uma mulher trans que tem o cabelo comprido. Por isso, ela teve que usar o boné para passar na entrevista. Em todas as entrevistas que fez, ela teve que ir de homem.

Este relato é muito importante:

Eu fui, entreguei o currículo e já estava com o nome retificado, o que facilitou muito, muito. Mas ele ainda teve o cuidado de avisar que eu era uma mulher trans e que era pra ser tratada de acordo como eu gostaria de ser tratada e eu fui muito bem recebida nessa empresa por muitas pessoas e por outras, não.

O nome também é muito importante, porque, quando a pessoa tem o nome retificado na hora da entrevista, ela já passa por menos constrangimento. Então, o acesso à mudança de nome facilita o acesso dessas pessoas ao trabalho.

Aqui está o relato da Carla também:

Eu já aguentei os piores abusos imagináveis e inimagináveis. Mas eu sempre tive facilidade de encontrar trabalho antes da crise. Eu não duro, lógico, eu não duro no trabalho. Mas, geralmente é um mês, dois meses que eu fico. Os dois serviços que eu mais durei, foram os dois serviços que eu mais suportei preconceito. Eu fui demitida de um trabalho porque o meu patrão não sabia qual banheiro eu ia usar.

Essa questão de, porque a pessoa é trans, o patrão não saber qual banheiro ela vai usar apareceu em várias entrevistas. Ou seja, o banheiro, além de ser um problema na escola, é um problema no trabalho também.

O nome social, o nome de registro é uma política muito importante.

Definimos o que é transfobia no trabalho e emprego porque não existem definições oficiais e também em pesquisas.

Colocamos como transfobia direta: o desrespeito à identidade de gênero e ao nome - alguém se negar a aceitar a identidade de gênero e o nome que a pessoa quer e falar propositalmente o nome errado dentro do espaço de trabalho; impossibilidade de o indivíduo usar o banheiro de acordo com a sua identidade de gênero - apareceram muitas pessoas que foram proibidas de usar o banheiro de acordo com a identidade de gênero delas; e insultos e xingamentos explicitamente transfóbicos.

Apresentamos uma definição para transfobia indireta também. Ela inclui insultos indiretos, quando as pessoas falam entre si, ficam comentando a identidade de gênero da pessoa trans. Também diz respeito à impossibilidade de ascensão na carreira, estagnação - a maior parte das pessoas que entrevistamos nunca conseguiu ser promovidas na carreira, em nenhum dos casos que analisamos. Compreende ainda a impossibilidade de ocupar cargos em decorrência da identidade de gênero - em muitos casos analisados também apareceram cargos que não poderiam ser ocupados por pessoas trans, por exemplo, uma mulher trans queria ocupar um cargo de vendedora e era impossibilitada por conta da identidade de gênero dela, mas isso não era informado. E outro aspecto da transfobia indireta é a exploração de trabalho distinta das pessoas cisgênero.

Este é um relato que resume bastante tudo isso:

Eu acho que pra nós, transexuais, os nossos melhores empregos é os lá de baixo - está escrito da forma como ela falou -, porque os de cima... se a gente não conseguir o lá de baixo... começar sendo auxiliar de cozinha, atendente, sabe? Você não consegue as coisas. Eu acho que nem os estudos hoje em dia tá ajudando sabia?

Trata-se de uma mulher de 23 anos, e a perspectiva de vida dela era que só conseguiria ocupar os empregos lá de baixo. Ela não se via ocupando um cargo de liderança em nenhum momento da própria vida por causa da opressão que sofria.

Eu percebi que todas as trans que falavam: “Eu tenho um emprego, eu trabalho”, era telemarketing. Então eu acho que as empresas de telemarketing devem pegar mais, porque não têm o contato direto com a pessoa, não vê a pessoa. Mas depois que você entra na prostituição você vê que o emprego de telemarketing jamais vai proporcionar o que a prostituição proporciona.

Analisamos muitos casos em que a prostituição apareceu como menos opressiva do que o próprio mercado de trabalho. Nela as pessoas ainda conseguiam sofrer menos opressão. Olhem a situação das mulheres trans do Brasil! A prostituição ainda é melhor do que o mercado de trabalho formal. A situação está tão opressiva que as pessoas a preferem ao trabalho com telemarketing, como auxiliar de limpeza.

Há também algumas questões que se misturam muito a machismo, racismo e classe social. Em outra oportunidade, podemos conversar mais sobre isso. Se vocês quiserem saber mais, eu posso falar também a respeito disso.

Muito obrigada. (Palmas.)

O SR. PRESIDENTE (Deputado Orlando Silva) - Agradeço à Taya Carneiro pela participação.

Eu quero fazer um acréscimo à qualificação do Régis, convidado da audiência. Ele é advogado e integra a União Nacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais - UNA-LGBT.

Registro a presença de Otávio Oliveira, Secretário Nacional do Movimento LGBT do Partido Socialista Brasileiro. (Palmas.) Muito obrigado pela presença.

Convido a Deputada Erika Kokay, que vai compartilhar conosco a coordenação deste seminário. Agradeço a sua presença. S.Exa e outros Parlamentares vão estar aqui durante este encontro. Nós participaremos em outros momentos. Muito obrigado, Erika, pela presença. Seja bem-vinda. (Pausa.)

A SRA. PRESIDENTA (Deputada Erika Kokay) - Bom, eu queria começar agradecendo ao Deputado Orlando Silva a realização deste seminário, porque foi uma iniciativa dele fazermos um recorte da transexualidade dentro do mundo do trabalho. Alguns recortes precisam ser feitos, mas o Brasil faz poucos. Agora quer destruir, inclusive, a única política pública que reconhece a desigualdade de gênero no mercado de trabalho e que busca superá-la, que é a Previdência.

Este seminário vai discutir a LGBTfobia, o racismo no mundo do trabalho e a necessidade da promoção do trabalho digno, que pressupõe que não haja relações sexistas, racistas, machistas, LGBTfóbicas. Um dos pleitos muito presentes na população trans é a questão do mercado do trabalho. As maiores vítimas de assédio moral no local do trabalho são as pessoas negras, as pessoas LGBTfóbicas e as mulheres.

Dando continuidade ao nosso seminário, concedo a palavra à Sra. Daniela Cardozo Mourão, que é cogestora do programa de prevenção à violência no campus da UNESP.

A SRA. DANIELA CARDOZO MOURÃO - Bom dia a todos.

Primeiramente, eu saúdo a Presidenta da Mesa e os seus componentes; os nobres Deputados presentes e os telespectadores que assistem a este debate.

Eu trabalho numa universidade que é fragmentada em vários campi e objetivo, inclusive, era levar a universidade para o interior.

No meu caso, é de Guaratinguetá tem uma vocação para exatas: Engenharia, Física e Matemática. Eu estou lá há mais ou menos 20 anos. Naquela universidade há cerca de 2 mil alunos, talvez 2.500 pessoas, contando os professores, e só existe um trans. Ao longo desses 20 anos, eu só vi um trans que, no caso, sou eu.

Isso me leva a questionar: onde é que eles estão? Por que não estão lá? São 5% da população! Por que eles não estão conosco? Por que não estudam conosco? Quando nós falamos em trabalho, isso significa também dignidade, basta lembrar que trabalho também é uma identidade. A pessoa pode ser um padeiro, um professor, um motorista. O trabalho permite ao cidadão uma posição na sociedade. Não é só ter poder de compra, mas ser útil para as pessoas.

Certa vez, uma pessoa estava vistoriando uma obra e perguntou: “o que você está fazendo aí?” “Estou acertando tijolo”. “E você?” “Misturando massa”. “E você?” “Eu estou construindo uma catedral.” Olha a visão de vida que ele tinha, visão de humanidade, de prestação de serviço que ele tinha.

Vou contar também uma outra história já que estamos falando de catedral. Há 20 anos, eu estava na Pastoral Universitária, e começou a se discutir sobre a comunidade LGBT. O Padre Benedetti, pessoa muito inteligente, levantou e disse: “olha, vocês estão enxergando só duas linhas: homem e mulher. O transgênero vem pela diagonal. Não adianta você colocar nessas linhas. Ela vem pela diagonal. E, nesta visão, o trans não é homem nem mulher, ou seja, não é nada. Como é que estará aqui conosco? Não é verdade?” E, por fim, ele fez uma pergunta sobre a qual me questionei durante 20 anos. Hoje eu já respondo. Será que é possível nós pensarmos no mundo em que cabe todo mundo? Que cabe o negro, que cabe o índio, que cabe o gay, cabe a trans? Será que tem alguma coisa que possa trazer essas pessoas para a sociedade?

Eu vou falar daqui a pouco sobre o que está sendo feito na Universidade, mas eu não posso deixar de destacar alguns programas que têm levantado essa questão e respondido a ela também.

Um dos programas que há em São Paulo - não sei se todos conhecem - é o TRANSempregos, iniciativa de algumas pessoas. O que ele faz é algo muito simples: o programa montou uma agência para transgêneros e tenta contatar as empresas para alocá-los. Afora isso, tem de haver também uma conscientização dos trabalhadores: promover palestras e encontros para que o transgênero também se sinta à vontade no trabalho. Não adianta contratar um transgênero, como muitas vezes acontece, e daqui a 6 meses ele ter que ir embora porque não consegue ficar na empresa devido ao desrespeito ao seu nome, à utilização de banheiro, além de brincadeiras, piadas, humilhações, etc.

Outro projeto que existe na cidade de São Paulo é o Projeto Reinserção Social Transcidadania, que promove a capacitação para as pessoas trans que estão em situação de risco. E o que isso tem a ver com emprego? Tem a ver porque se já é difícil encontrar emprego com capacitação, imaginem sem! Vou destacar de novo praticamente a inexistência de trans na Universidade. São poucos. Em meu campus, não há nenhum.

Outro programa que também destaco é o Fórum de Empresas e Direitos LGBT. São empresas que acordaram contratar pessoas do mundo LGBT. E contratam. Uma empresa de informática contratou cinco. Outra empresa que trabalha com sementes também.

Dentro do TRANSempregos, além das diretrizes para tratar a população LGBT de forma digna, há também a promoção da mudança de visão da empresa. Quer dizer, você transforma a visão dos outros funcionários em relação à pessoa trans para que eles a vejam como uma pessoa capacitada. A visão que as pessoas em geral têm é que a pessoa trans é o quê? É cabeleireiro, manicure ou prostituta. Dificilmente se vê alguém com uma visão diferente.

Então, esse ponto é muito importante para acabar com o preconceito. Há várias empresas signatárias que contrataram e recrutam pessoas trans. É um programa muito interessante. Se os senhores acessarem a Internet, vão ver que, sim, é possível pensar em um mundo em que caiba todo mundo.

Essas empresas, quando contratam trans, percebem que o ambiente de trabalho muda. A visão das pessoas modifica-se com relação aos trans. Como eu disse, combate o preconceito. O trans é inserido no mercado de trabalho e vai atender clientes que vão também passar a ter outra visão a respeito deles. É um resgaste feito dessa visão estereotipada do trans. Por isso que o trabalho é importante.

Uma outra coisa também importante é que, quando as empresas contratam os trans, elas percebem que eles têm às vezes um desempenho muito melhor do que as pessoas cisgênero. Quando se conversa com elas ou com eles, percebe-se o receio que têm de serem mandados embora. Tanto é que dizem: “Não. Aqui eu vou ficar, aqui eu estou à vontade, aqui eu posso ser quem eu sou”.

E por que o transgênero não sai da rua? Porque na rua ele pode ser quem ele é. Na rua, ele é respeitado como transgênero, apesar de todo aquele ambiente de violência. Mas quando se muda a esfera, o paradigma da empresa, ali também ele vai se sentir à vontade.

Peço licença à Presidente para contar um pouco da minha história na UNESP, como foi a transição, o que aconteceu. Uma coisa notável é que os transgêneros que estão bem empregados e que têm certa posição no mercado, eles fazem a transição mais tarde. Se fizerem a transição antes de se qualificar, é rua. Não tem jeito. Eu conheço vários trans que fizeram essa transição, professores inclusive. Para eu poder construir a minha vida profissional, tive que passar por uns 35 anos em estado de disforia 35 anos de sem me aceitar, 35 anos tendo ódio do corpo, 35 anos sem saber direito quem eu sou.

Essa não aceitação vem de onde? Vem da escola machista, que ensina que se um homem quer se tornar mulher ele vai se rebaixar. O inverso também é verdade. Mulher que tende a ser homem.

A teoria de gênero vigente nas escolas - vamos lembrar que existe uma teoria de gênero vigente na escola - diz que está indo a um lugar onde não pode chegar, ou seja, está ficando grossa, ou coisa desse tipo.

Então, por conta disso, por me sentir literalmente uma aberração, por querer construir uma carreira, eu demorei 35 anos para fazer a transição e trabalhei por 20 anos assim. Mas chegou um ponto em que o sentimento de disforia foi tão grande que não tinha jeito. Ou eu fazia minha transição ou não daria mais para viver. Não dava mais para ficar me odiando, mutilando-me a cada momento em que eu dizia meu nome. Não dava. Então, eu decidi fazer a transição.

Outro detalhe importante que nós ouvimos sempre: cada um tem sua opção. Ser transgênero não é opção, é condição, é o que você é. Não é porque você quis ser transgênero. Eu acho que diante do preconceito, ninguém quer ser transgênero, porque quem é preferia, antes de fazer a transição, não ser.

Bom, e aí decidi fazer a transição e conversar com as pessoas. Conversei com alguns colegas e vejam só que interessante: eu fui fazendo aos poucos, publicando coisas no Facebook.

Tive uma conversa com um amigo, a mais difícil da minha vida com ele, e o interessante foi que a postura dele não foi a de me julgar, mas de entender: “Mas o que é isso? Como é que funciona?” Fez um monte de pergunta a mim. E chegou a um ponto em que as coisas estavam tão nítidas que - olha só que interessante, olha o que é uma empresa aberta e inclusiva - a chefe me chamou para conversar sobre isso e não para me julgar, mas para tentar entender. Ela entendeu isso como um problema. O problema não é nascer transgênero, o problema é você estar em um gênero inadequado. Ela entendeu que estar no gênero inadequado é um problema. E foi conversar com todos os professores do departamento, individualmente, foi atrás do que fazer, de conscientizar os professores. Com essa atitude, deu tudo certo.

Fomos conversar também com o vice-diretor. Ela me acompanhou. Ele cuidou da parte no âmbito social, foi à reitoria e resolveu tudo. O diretor também me disse: “olha, o que eu quero é ver você bem”. Vejam a diferença da situação padrão que nós temos. Vejam como é uma coisa bem mais tranquila, amena, melhor. O caso foi levado para a reitoria, e as coisas foram fluindo bem. O grande medo que havia na universidade era com relação aos alunos. Mesmo assim, os alunos não tiveram nenhuma restrição.

E o que deflagrou, só para encerrar, toda essa questão da mudança de nome? Deflagrou que nós reativamos o Grupo de Trabalho de Prevenção da Violência, que estava desativado, que resultou na norma do nome social, uma das melhores que nós temos no mercado. Nós utilizamos vários termos sobre os quais ainda vou falar. Dentro do Grupo, nós vamos fazer uma pesquisa sobre violência dentro da UNESP.

A UNESP é fragmenta, tinha alunos isolados, grupos separados. Nós vamos fazer uma busca geral e verificar o que está acontecendo na nossa Universidade, para divulgar as pessoas que trabalham contra a violência. Nós recebemos denúncia, vamos promover um curso novo, e espero que todos participem pelo menos para julgar. Nós estamos preocupados com a violência e atentos a ela.

Eu até agora fui convidada a fazer cinco palestras para esclarecimento desse assunto. Existe já um trabalho sobre diversidade na UNESP, mas não com relação à pessoa trans. Eu devo fazer cinco palestras em eventos, não necessariamente voltados à diversidade, mas alguns eventos científicos inclusive.

Nós fizemos, como falei, uma norma que abarca o nome social, algumas coisas que muitas normas não fazem. Por exemplo, nós colocamos só para nome e agnome, tipo Ayrton Senna, Madonna, etc. E só para adequação de gênero, quer dizer, eu não posso mudar de João para Paulo. Isso foi um ponto pacifico. Outra coisa que não sei se é enérgico em outras normas: respeito ao tratamento oral aos pronomes, ao nome, sem ter objeção de consciência.

Uma aluna em um do campus processou a professora com relação ao não uso do nome social. Imaginem! Na primeira semana de aula, o professor chama a pessoa pelo nome civil e ela é obrigada a levantar-se, e todo mundo vê que se trata de um ou de uma travesti.

Nós conseguimos recursos da iniciativa privada para construir núcleos de atendimentos às vítimas de violência, não só trans, mas negros, índios, mulheres etc. E também vamos, com esses recursos, fornecer palestras. O importante disso tudo é que eu fico imaginando na Universidade, quantas pessoas são trans e estão sofrendo sem fazer a transição? Quantas pessoas são trans lá e, por conta do medo, não fazem a transição? Eu espero que isso acabe. Com todo esse trabalho que estamos fazendo, eu espero que isso acabe e que nós consigamos atender essas pessoas.

Quero lembrar também que o aluno trans, quando chega à Universidade, ele chega marcado de violência. Quer dizer, nós não podemos permitir que sejam praticadas outras violências contra. Nós temos que ter o quê? Nós temos o programa de acolhimento para esses alunos. Já imaginaram um aluno que foi massacrado durante 7 anos chegar aqui na primeira semana e passar pelo trote. Não. Na Universidade tem que ter o programa para esses alunos. E não só para os trans, mas também para os que vêm de comunidades mais carentes, violentas etc. Tem que ter um acolhimento diferente.

Com relação às ações, eu acho que existe uma congruência com relação aos “quatro cavaleiros do Apocalipse” - vou colocar assim - que afetam a pessoa trans. Uma delas é o emprego, questão que estamos discutindo aqui. Sem emprego o cidadão não exerce um papel na sociedade, e, sem emprego, ele acaba sendo marginalizado. Isso não ocorre só com a pessoa trans, mas com qualquer pessoa que esteja empregada.

O caso da pessoa trans é um pouco mais grave porque ela não consegue emprego por ser quem ela é e não por uma questão do mercado ou pela situação política e econômica que nós estamos vivendo. Simplesmente existe uma vaga, a pessoa é capacitada, mas não é contratada. Há casos de currículos rasgados, ou situações em que o empregador vê outro nome na carteira de trabalho e manda a pessoa embora.

Outro problema que nós temos que resolver é sobre a utilização do banheiro. Não dá para uma pessoa vestida de mulher, ou que se identifica como mulher, passar a humilhação de entrar no banheiro dos homens. Não faz sentido.

Uma charge interessante diz que, quando se vai ao banheiro, vê-se o homenzinho e a mulherzinha na porta, e aí se escolhe onde entrar. Com o trans, não. Ele pensa que se entrar no banheiro feminino as mulheres vão gritar e, se entrar no masculino, vão bater nele. “O que eu faço? Para onde eu vou?”

Precisamos lembrar que a segunda doença que mais afeta os transgêneros é a do trato urinário, porque essas pessoas não conseguem ir ao banheiro. Em um caso ocorrido no Rio de Janeiro, por exemplo, uma trans se sujou porque o segurança ficou na porta e não a deixou entrar. E pergunto: ela vai voltar ao shopping? Não vai.

O uso do banheiro é o uso do direito ao espaço público, é o direito de se poder conviver com outras pessoas. Ninguém tem que sofrer violência por conta disso.

Outro cavaleiro do Apocalipse é a questão do nome. Não dá para a pessoa ser homem ou ser uma trans mulher, por exemplo, e ter um nome de homem. Isso é ridículo, é uma coisa que constrange. Em qualquer lugar, ela vai ter que mostrar seu documento.

Então, imaginem, senhoras e senhores, se tivessem seus nomes trocados. Por quantas situações vexatórias os senhores e as senhoras passariam? É um absurdo. O Brasil tem que adotar a postura da Argentina, da França, em que a mudança de nome é fácil, é só ir ao cartório.

Hoje o que reconhece uma pessoa no sistema são números, não são nomes. O nome é como a pessoa vai ser tratada. Liguem para qualquer empresa ou sistema de Governo sem falar o seu CPF. Quantos nomes são homônimos? Então, qual é o problema de termos uma facilidade de adequar o nome ao gênero?

Por fim, temos a questão da violência, que é o que mais afeta os transgêneros. E não se trata só, pessoal, de assalto, etc. Tudo isso é violência, que tem que ser tratada. Isso é grave, e nós temos que legislar a respeito, punir os infratores. Mas a violência contra trans é ideológica, é contra um grupo, é violência contra uma população inteira.

Quando vejo que mataram uma trans, é como se eu estivesse sendo agredida também. Isso o Estado de Direito não pode permitir. Ele tem que reprimir isso com vigor, com leis que punam a violência ideológica, seja contra negros, contra mulheres. No caso da mulher e do negro, nós já temos, mas falta avançar no caso dos trans.

Era isso, Sr. Presidente.

Obrigada. (Palmas.)

A SRA. PRESIDENTA (Deputada Erika Kokay) - Agradeço à Daniela e passo a palavra ao Sr. Francisco Moraes da Costa Marques, que é assessor da Diretoria de Políticas de Educação em Direitos Humanos e Cidadania da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão do Ministério da Educação.

O SR. FRANCISCO MORAES DA COSTA MARQUES - Bom dia, Deputada Erika Kokay. Agradeço a CTASP pelo convite para participar deste seminário hoje. Bom dia, demais integrantes da Mesa, demais participantes deste seminário e pessoas presentes aqui neste plenário.

Inicialmente, as pessoas que têm uma visão estreita a respeito do tema do seminário proposto hoje poderiam dizer que o MEC não tem envolvimento direto com a temática, por não ter competência para se debruçar sobre as questões envolvendo capital e trabalho, local de trabalho ou políticas de emprego. No entanto, o tema deste seminário exige uma visão muito mais ampla. Como as duas exposições que me antecederam mostram, este problema, a questão da LGBTfobia e a questão do racismo, que ainda vai ser tratada, é muito mais amplo e envolve, sim, o MEC, por passar pela educação formal, que é uma competência do MEC, e por passar pela educação informal, o que envolveria também o Ministério dos Direitos Humanos. O problema passa, enfim, pela construção de um novo paradigma, em que não sejam toleradas atitudes de discriminação quaisquer que elas sejam. Então, passa também pela mobilização da sociedade civil e dos ativistas e militantes, que, em parte, hoje se encontram aqui.

Eu vou falar um pouquinho da minha diretoria, a Diretoria de Políticas de Educação em Direitos Humanos, onde existem duas coordenações. Uma das coordenações acompanha a frequência das crianças que são beneficiárias do Programa Bolsa Família - e aí estamos falando de direitos humanos também, porque esse Programa contribui de forma fundamental para que essas crianças e suas famílias tenham acesso a bens e a serviços essenciais. A outra é a Coordenação de Educação em Direitos Humanos, que desenvolve um trabalho focado na questão da diversidade. Trabalhando com diversidade e direitos humanos, lidamos com toda forma de discriminação.

Nessa Coordenação, existe um programa que é, digamos assim, o nosso carro-chefe: o Pacto Universitário pela Promoção do Respeito à Diversidade, da Cultura da Paz e dos Direitos Humanos. Eu vou falar um pouquinho do Pacto, porque trata-se de uma iniciativa que, além de ser importante por si mesma, se desdobra em outras iniciativas da diretoria. O Pacto Universitário pelos Direitos Humanos foi lançado em novembro do ano passado por uma iniciativa conjunta do MEC com o Ministério dos Direitos Humanos. Sua intenção é reunir instituições de ensino superior comprometidas com o desenvolvimento de ações de promoção de direitos humanos, reconhecimento e valorização da diversidade.

O Pacto inclui desde as maiores universidades públicas e privadas, com ou sem fins lucrativos, até as faculdades menores, nos Municípios mais distantes. Então, dada essa heterogeneidade do grupo, nós permitimos uma ampla flexibilidade. As instituições aderem ao Pacto e se comprometem a desenvolver ações de direitos humanos em cinco eixos: ensino, pesquisa, extensão, gestão e convivência.

Então, por exemplo, essas instituições de ensino superior podem propor a inclusão da Educação em Direitos Humanos na grade curricular de todos os seus cursos. Com isso, o sujeito que for estudante de Medicina vai obrigatoriamente ter que estudar direitos humanos, porque não basta ser um bom médico, tem que ter também conhecimento da diversidade que compõe a sociedade brasileira, o que inclusive é fundamental para o bom atendimento e para a boa prestação de serviços públicos. Isso serve também para os estudantes de Engenharia ou qualquer curso e faz com que as pessoas saiam da faculdade ou da universidade alertas de que não são toleráveis ações de discriminação.

Nesses 9 meses nós conseguimos a adesão de 300 instituições. Agora, o próximo passo é identificar as convergências e identidades que há entre essas instituições, entrando o MEC como facilitador de aproximação entre elas, para transformar esse conjunto de signatários do Pacto em uma rede de organizações envolvidas e engajadas na promoção de direitos humanos. A essa rede serão somadas instituições que nós chamamos de entidades apoiadoras, que são Secretarias de Educação Municipais e Estaduais, movimentos sociais, ONGs, empresas, o Conselho Nacional do Ministério Público.

Como eu disse, o Pacto serve como uma âncora para outras iniciativas da diretoria. Uma delas é o lançamento de um edital para financiar projetos de pesquisa voltados à questão dos direitos humanos e da diversidade. Esse edital está sendo finalizado e provavelmente será publicado no Diário Oficial da União na próxima semana. Entre as áreas de interesse da diretoria estarão projetos que se dediquem às questões da diversidade e identidade de gênero, da diversidade e orientação sexual e da diversidade em questões étnico-raciais.

Outra iniciativa - esta já está em curso, já foi lançado o edital e o processo de seleção já está acontecendo - é a oferta de curso de formação continuada em educação em direitos humanos para professores da rede de educação básica. Serão capacitados mil professores inicialmente, e as universidades, por meio de financiamento do MEC, vão oferecer esses cursos.

Uma terceira iniciativa diz respeito ao Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego - PRONATEC. Também está sendo finalizado o desenho dessa política, em parceria com o Ministério dos Direitos Humanos. A intenção é oferecer turmas do PRONATEC voltadas às demandas da população LGBT.

Compete ao Instituto Migrações e Direitos Humanos - IMDH, com a sua capilaridade, fazer a identificação de quais são as demandas, alcançar essas pessoas, indicar as turmas, garantir as matrículas e, o mais importante, acompanhar. É preciso fazer um acompanhamento muito próximo desses alunos para que não haja evasão. Aí, nós vamos oferecer o curso. Esse é um trabalho de parceria entre os dois Ministérios que está num estágio bem avançado. Tenho certeza de que é uma iniciativa que vai ao encontro dos assuntos aqui discutidos, porque tem a ver diretamente com a empregabilidade e capacitação dessas pessoas.

Uma última iniciativa, também ligada ao Pacto, é a plataforma de educação a distância ligada a direitos humanos, que será lançada nos primeiros meses do ano que vem. Nessa plataforma on-line serão encontrados conteúdos sobre direitos humanos e diversidade voltados não só aos professores, mas a toda a comunidade escolar, porque é preciso trabalhar também com os gestores, com os diretores das escolas, com os pais, com os alunos. Trata-se de uma plataforma que vai oferecer conteúdos genéricos e também conteúdos específicos para cada um desses segmentos.

Então, eu acredito que essas quatro iniciativas e mais o Pacto são ações que vão gerar frutos positivos. Essas ações fazem parte de um esforço fundamental que tem que ser feito para se somar ao combate cotidiano às ações de discriminação, proporcionando uma mudança duradoura na mentalidade das pessoas, com objetivo de se formar pessoas com outros valores.

Era isso o que tinha a dizer.

A SRA. PRESIDENTA (Deputada Erika Kokay) - Obrigada, Sr. Francisco Moraes.

Passo a palavra ao Sr. Régis Vascon, que é advogado e guarda municipal.

O SR. RÉGIS VASCON - Bom dia a todos!

Primeiramente, quero cumprimentar a Mesa, na pessoa da Deputada Erika Kokay, que a preside.

Muito obrigado pela minha vinda aqui.

Embora não esteja mais aqui, eu preciso pontuar a importância para nós do Deputado Orlando Silva, do PCdoB, porque, mesmo não sendo LGBT - faço questão de frisar isso -, ele é um dos poucos Deputados que teve a coragem de trazer esse assunto e de se colocar sempre contra a LGBTfobia, não só neste espaço em Brasília, como também no espaço do seu partido e nos demais espaços que ele comunga.

Quero agradecer ao meu amigo Andrey Lemos.

Muito obrigado.

Também quero agradecer às sagradas sete linhas da Umbanda pela minha presença aqui.

Eu vim representando a UNALGBT - União Nacional LGBT, que foi fundada em 2015 para se somar às demais instituições e ao poder público na discussão das pautas e demandas LGBT e também na busca pelas políticas públicas LGBT.

Eu preciso fazer uma ressalva em relação à palavrinha “advogado”. Eu não exerço a advocacia por algumas razões, e uma delas é que, como guarda municipal, eu sou impedido de exercer a advocacia, embora seja sócio em um escritório onde há cinco advogados hoje, e ainda estamos abrindo vagas para mais contratações. As demais razões eu vou falar no final da minha preleção, porque vou falar da minha experiência profissional, como guarda municipal, como profissional do Direito, exercendo, na verdade, a profissão forense com a limitação da advocacia.

Eu sou pós-graduado e especialista em Direito Público, Direito Criminal e Criminologia. Sou ativista do Movimento LGBT desde 1999, quando entrei para o movimento como lésbica masculinizada. Assumi a transexualidade masculina há 14 anos.

Uma das experiências que trago aqui, que talvez seja a mais importante, porque venho com um olhar mais técnico, diz respeito ao meu trabalho no Centro de Referencia LGBT de Campinas, que foi a primeira política pública do País, formada em 2003, para salvaguardar as pessoas LGBT. Até então não existiam serviços para atender especificamente a população LGBT. Atualmente, acho que temos uns 36 Centros de Referência no País todo - não é Andrey? -, sendo que a maioria é privada. Acho que só uns 6 são públicos. Eu trabalhei 3 anos nesse Centro de Referência LGBT como assessor jurídico.

Eu vou à preleção.

No segundo ano em que eu estava no Centro de Referência LGBT como assessor jurídico, eu fiz um mapa de violência. Eu tinha acabado de fazer uma especialização em Criminologia paga pela Prefeitura municipal de Campinas. Então, eu acabei criando um mapa de violência, pegando todas as denúncias que eu tinha recebido, que tinham sido umas noventa e poucas - vamos ver a quantidade daqui a pouco -, e distribuindo-as em modalidades de violência.

(Segue-se exibição de imagens.)

Nós vemos ali, já que estamos falando da relação de trabalho, que o primeiro índice no ranking de denúncia contra a população LGBT - e agora não estou falando só de pessoas transexuais - são as relações de trabalho. O segundo no ranking é a violência doméstica e intrafamiliar, com 20 casos. E em terceiro no ranking está a violência institucional, com 18 casos.

Lembro que, se nós somarmos os 18 casos da violência institucional com os 7 casos da policial - a violência policial também é institucional, mas eu as desmembrei só por uma questão de metodologia -, nós teremos 25 casos de violência. Então, a violência institucional empatou com a do trabalho. Isso no segundo ano em que eu estava lá. Antes de eu sair, no terceiro ano, a violência institucional passou para o segundo lugar no ranking. Ela foi para o lugar da violência doméstica intrafamiliar, e a violência doméstica passou para o terceiro lugar.

Eu chamo a atenção para o primeiro ponto de toda a preleção que eu trouxe. O Estado está nos violentando mais que a família e a sociedade. E quando eu falo em sociedade, eu coloco os sete casos de violência urbana e os cinco casos da comercial, o que dá menos que a quantidade de casos de violência institucional. Então, isso é alarmante. O Estado está violentando as pessoas LGBT mais do que a família e a sociedade.

Nesse eslaide estão as identidades sexuais - lésbica, gay, bissexual, travesti, transexual e transgênero - e os casos de discriminação no trabalho, o que nos leva à segunda reflexão: por que será que há nove casos com gays e dois casos com lésbicas? Será porque a identidade da mulher lésbica é menos vista e menos assumida? Será porque o machismo e o fetichismo dos patrões fazem com que talvez os gays sejam mais discriminados no trabalho? “Vamos deixar a lésbica contratada porque eu me interesso. De repente, sexualmente, dá para rolar alguma coisa. O gay, não. Eu tenho nojo de homem. Então, vamos demitir.”

Nós temos um caso de transgênero, mas no eslaide está zero porque, na verdade, esse mapa é da primeira pesquisa que eu fiz. Na segunda, há um caso de transgênero. Que caso foi esse? Foi o de um menino que era transgênero. Para quem não sabe, transgênero é aquela identidade que transita entre os gêneros. Então, hoje, se a pessoa se sente mais mulher, ela se veste e se coloca como mulher. No outro dia ou em outro período, se ela se sente homem, ela se veste e se coloca socialmente como homem.

A coordenadora de um centro de saúde de um bairro de Campinas me ligou desesperada acerca de uma pessoa que lá trabalhava, em torno dos seus 25 anos, que não era servidora pública de Campinas, mas foi contratada como celetista através de um convênio que havia. Essa pessoa começou a atender como Débora - vou dar um nome fictício. No bairro desse centro de saúde, a maior parte dos moradores são idosos. Um dia, um senhorzinho, que a conhecia como Débora, foi conversar com ela. Nesse dia, ela estava totalmente vestida de menino. E esse senhor foi falar com ela: “Débora, por favor, a minha receita”. E ela achou isso ruim e acabou, infelizmente, xingando o senhor. Ela disse: “Eu não sou Débora; eu sou João” - também estou dando um nome fictício. E essa coordenadora ficou louca depois que o idoso denunciou isso para a coordenação. Ela me perguntou: “Régis, o que a gente faz?” Então, trago mais essa reflexão.

O correto a se fazer aqui seria, como é feito na Argentina, que se adequasse o nome, que fosse possível chegar ao cartório e dizer: “Olha, eu sou transexual. Eu vim adequar o meu nome”.

Então, essa é a primeira situação que eu trago sobre a dificuldade de nós pensarmos o direito das pessoas LGBT também em relação às identidades. Como vamos pensar na adequação da identidade de transgênero? Para travesti e transexual, tudo bem, não haverá problema, a priori. Mas para o transgênero como que ficaria? Se eu transito entre os gêneros, eu não posso chegar ao cartório hoje e falar “Eu sou Débora” e amanhã falar “Eu sou João”.

Eu trago aqui a realidade. Por isso eu falei que traria uma palavra técnica de tudo o que eu vi no Centro de Referência LGBT. Então, quando se pensa em direitos humanos LGBT, nós temos que pensar também com essa visão de como fica a questão jurídica.

Esse é o número de denúncias do primeiro mapa de violência. Ocorreram 94 casos, sendo que 78 foram arquivados. Esses foram os motivos do arquivamento. E aí eu chamo atenção para mais um ponto que também temos que pensar: 29 casos foram arquivados por inércia da vítima. A vítima formula a denúncia e não toca a denúncia à frente. Então, ela para e não aparece mais no serviço. Você faz todo um trabalho jurídico e, às vezes, não consegue notificá-la para que ela responda a uma comissão processante, por exemplo. Por que isso acontece?

Eu vejo que isso acontece também com mulheres vítimas de violência. Eu também trabalhei dando assessoria jurídica num centro de referência de proteção à mulher vítima de violência em Campinas e percebi que lá também acontece isso. Por que será que as vítimas se sentem tão fragilizadas a ponto de desistir da denúncia? Será que não é a morosidade do Estado, dos mecanismos de denúncia e organismos de proteção? A gente tem que começar a pensar sobre isso. Como criminólogo, eu falo que sim, esse é um dos motivos, a morosidade do Estado em investigar e dar uma resposta pronta à vítima.

Depois eu vou falar dos casos práticos, pois eu tenho muitos e trouxe alguns para vocês. Eu estou escrevendo um livro chamado Violência Doméstica Intrafamiliar Homo-lesbi-transfóbica. Nesse livro, eu desenvolvo essa régua da “homolesbitransfobia”, pensando em quê? Num dos capítulos do livro que trata da criminalização da LGBTfobia.

Por que eu pus “homolesbitransfobia”? Porque no livro eu conto a história do movimento LGBT todo, pontuando essa questão do empoderamento das mulheres lésbicas, o surgimento do movimento de transexuais, com a ANTRA, a Associação Nacional de Travestis e Transexuais.

Não está na relação de trabalho este exemplo que eu vou citar agora, mas ele é importante para nós falarmos da régua da LGBTfobia. Eu recebi o caso de um homem transexual com 14 anos de idade. Esse caso foi entregue para nós pela psicóloga do Centro de Referência LGBT. Ela passou o caso para mim porque a mãe do menor vinha violentando bastante a criança.

O que aconteceu? Ele aparecia sempre com o braço roxo, com hematomas no rosto, com sinais de espancamento. Um dia, quando a psicóloga não estava, esse adolescente apareceu lá todo marcado, com hematomas. A minha atitude foi única: “Vamos ao Conselho Tutelar agora”. Peguei esse adolescente e fui até o Conselho Tutelar para discutir o caso.

Vou contar o histórico da mãe: era uma mulher negra da periferia, que teve um marido há 10, 15 anos; era violentada e era agredida por esse homem; um dia ela foi traída por ele, que saiu de casa e a abandonou. E o que ela fez? Ela adotou uma criança, um bebê, a Taiane - é um nome fictício. A Taiane, aos 14 anos, começou a dizer para a mãe dela que ela era um homem transexual.

Então, quando pensamos em criminalizar a LGBTfobia, temos que pensar em casos assim. Como mostrar para essa mulher, essa senhora negra, que essa criança tem direito à sua identidade? Essa mulher projetou o seguinte: “Vou adotar uma menina para ser minha companheira, porque o homem é a expressão da agressão na minha vida”. Então, temos que pensar em tudo isso.

Acho importante falar que, em relação aos mecanismos de denúncias e aos organismos de proteção, nós não conseguimos proteger essa criança. Essa mulher fugiu para o Rio de Janeiro com a criança quando nós a notificamos, pela Vara da Criança e da Juventude, por três vezes, para que ela comparecesse em juízo e explicasse toda a violência.

Então, o mais importante é refletirmos sobre isso. Os mecanismos de denúncias e os organismos de proteção hoje não estão dando conta de proteger nossas crianças e muito menos nossos adultos LGBT.

Esta é a capa do livro que pretendo publicar no ano que vem. Estou falando do livro por quê? Eu falo de tudo isso no livro e cito grande parte dos exemplos que vivenciei no Centro de Referência LGBT.

Eu acho importante também falar de outro caso para refletirmos sobre essa questão da documentação em cartório e toda a questão jurídica. Eu atendi uma transexual chamada Nicole - dei um nome fictício. Ela trabalhava na empresa Tecnol, uma fábrica de óculos em Campinas que foi comprada por um capital italiano. Antes da compra pelo capital italiano, o advogado da empresa me procurou. Nós havíamos mandado um ofício para marcar uma reunião com a empresa porque essa transexual sofria violência nas relações de trabalho com a sua chefe hierárquica direta. Para resumir, porque a denúncia é um pouco extensa, nós também não conseguimos protegê-la. Ela foi demitida. A empresa pagou os direitos devidos a ela, mas a demitiu por ser transexual.

Como processar a empresa, dizendo que ela demitiu a funcionária por ela ser transexual, se nós não tínhamos prova? Como produziríamos provas para provar que ela foi demitida por ser transexual?

Um dia ela apareceu no Centro de Referência LGBT toda de gay, montada de homem, usando boné, calça jeans, camiseta larga. Eu, como homem trans, fiquei assustado. Eu olhei para ela e falei: “Poxa!” Como trans, isso me chocou. E eu disse: “O que aconteceu contigo, minha querida?” Ela disse: “Régis, meu pai e minha mãe são idosos, eu tenho um irmão de 35 anos que é drogado. Só eu sou a provedora da minha família. Meu pai tem aposentadoria, mas recebe pouco. Eu tenho que trabalhar, e, como mulher transexual, eu não arrumo emprego. Como gay, eu já consigo mais do que como mulher transexual. Então, vou ter que ficar como gay”. Quanto isso deve feri-la! E ela realmente tinha arrumado emprego como gay num call center.

Então, temos que pensar em tudo isso. Eu tenho mais casos para citar, casos interessantíssimos, inclusive um caso de facada que a polícia não investigou, que é outro problema. Se a Presidente me deixar, eu gostaria de falar sobre a denúncia de um gay que foi espancado no shopping D. Pedro por três lutadores de jiu-jítsu. Nesse espancamento, ele teve o nariz e o braço quebrados e o crânio quase fraturado.

O motivo por essa agressão não ter sido contida foi que os seguranças ficaram olhando - simplesmente olhando. Depois que os seguranças viram que ele caiu no chão desmaiado, eles correram lá, porque devem ter pensado: “Vai sobrar pra gente. Vamos fingir que estamos fazendo alguma coisa”.

Eu mandei dois ofícios para a Polícia Civil, porque ela estava demorando na investigação. Existe um prazo. A Lei de Processo Penal reza um prazo para que a investigação e o inquérito policial sejam concluídos e remetidos ao juiz. Esse prazo se esvaía e nada, se esvaía e nada. Eu mandei dois ofícios, e o delegado - desculpe a expressão - nem se importou.

Então, voltando à questão dos mecanismos de denúncias e dos organismos de proteção, nós precisamos pensar e discutir esses organismos aqui e apontar políticas públicas que realmente os solucionem.

Para terminar mesmo, Sra. Presidenta, eu quero dialogar com o representante do MEC, com a devida vênia. Eu sou de Campinas, no Estado de São Paulo, onde a Câmara Municipal aprovou um plano de educação municipal para as escolas municipais. Nesse plano, a palavra “gênero” simplesmente foi vetada, porque a Câmara entendia que a palavra “gênero” estava atrelada diretamente à discussão da sexualidade. Olhem que absurdo jurídico: um Vereador fez uma moção de repúdio para Simone de Beauvoir. Ele conseguiu. E foi vetada por completo principalmente a discussão de identidade de gênero e discussão sexual nas escolas.

Isso não acontece só em Campinas. Eu dou palestra há 10 anos sobre o mesmo tema e visito várias cidades. Já fui do Oiapoque ao Chuí para levar esse tema. Eu pergunto ao MEC: o que o MEC tem feito? Qual a resposta que o MEC tem dado? O MEC tem conhecimento de que as Prefeituras andam violentando as pessoas LGBT nos seus planos de educação? O MEC pode fazer um apanhado de todas as Prefeituras no Brasil e dar uma resposta para isso? Como dizia o meu avô, é de pequeno que se torce o pepino. Então, é de pequeno que se promove a inclusão social. Os planos de educação municipais estão despromovendo a inclusão social. O que o MEC fez até agora?

Obrigado, gente. (Palmas.)

A SRA. PRESIDENTA (Deputada Erika Kokay) - Agradeço ao Sr. Régis.

Depois de passarmos a palavra à Ângela, vamos abrir a palavra, por 3 minutos, às pessoas que queiram usá-la. Existem três pessoas inscritas: a Letícia de Oliveira, a Heliana e o João Paulo. Mais alguém? (Pausa.)

Estão encerradas as inscrições.

Depois da Ângela, passaremos a palavra à Letícia, à Eliane, ao João Paulo e à Ieda. Cada um disporá de 3 minutos. Depois, se as pessoas que compõem a Mesa quiserem fazer uso da palavra - já sei que a Daniela quer falar -, nós vamos abrir para que elas possam falar por, no máximo, 2 minutos. Após, nós encerramos. As pessoas que estão à mesa, se quiserem, poderão fazer uso da palavra após a fala da plateia. Pode ser assim? Vamos pactuar? (Pausa.)

Então, eu passo a palavra à Sra. Ângela Guimarães, Presidenta Nacional da União de Negros pela Igualdade - UNEGRO.

A SRA. ÂNGELA GUIMARÃES - Bom dia a todas e a todos! Saúdo a Deputada Erika Kokay, uma parceira de muitas lutas e desafios neste espaço da Câmara dos Deputados.

Quero também saudar o Deputado Orlando Silva pela iniciativa de trazer o enfrentamento do tema LGBTfobia e o Racismo no Mundo do Trabalho; todas e todos que compõem esta Mesa; as representações dos movimentos sociais e populares, a Ieda, da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação - CNTE, a Heliana, da Rede de Mulheres Negras, o Andrey, da UNALGBT, e todas e todos os demais.

Primeiramente, para nós da UNEGRO, é de grande importância retornar a esta Casa para discutir um tema que não seja única e exclusivamente a resistência aos ataques que por muitas vezes são originados nesta Casa, ataques aos direitos conquistados pela população brasileira, pela população negra, pelas mulheres, pela população LGBT, pelas trabalhadoras e pelos trabalhadores.

Infelizmente, os últimos anos nesta Casa têm sido de ataques diretos e cotidianos aos nossos direitos acumulados. Esta Casa, pela maioria de seus Deputados, é parte ativa e protagonista do golpe que está em curso no Brasil desde que Temer assaltou a Presidência da República. Então, ficamos felizes por virmos aqui e não sermos recebidos com bala de borracha, com gás de pimenta e com outras formas de arbitrariedade com as quais os movimentos sociais, no último período, têm sido tratados nesta Casa.

Sobre o tema em si, nós acreditamos que é de extrema importância que essa pauta seja trazida aqui, ainda que num ambiente de desmonte dos direitos sociais e trabalhistas, sem que saibamos bem o que nos aguarda no futuro. Não sabemos qual vai ser o próximo capítulo desta história, porque já foi aprovada aqui uma reforma trabalhista que é absolutamente regressiva nos direitos da classe trabalhadora e também está já está engatilhada a aprovação de uma reforma da Previdência, além de uma reforma política, que hoje vai a plenário, às 13 horas, que pretende consolidar a sub-representação dos grupos que são majoritários na população brasileira, mas que são minoritários nos espaços de poder.

Então, o primeiro elemento da minha fala é o repúdio à agenda regressiva que esta Casa tem apresentado para a população brasileira no último período.

Sobre o tema em questão, que diz respeito a quais políticas públicas são necessárias para que possamos avançar e remover as barreiras que têm impedido historicamente as mulheres, a população negra, a população LGBT de serem inseridas e de ascenderem ao mundo do trabalho, acreditamos que primeiro é necessário afirmar que o trabalho é importante para a dignidade e para a emancipação das pessoas, para que elas se tornarem sujeitas e sujeitos de sua própria história. Para nós, o ponto de partida é esse: o direito ao trabalho tem que ser universal e não pode ser negado por nenhuma estrutura do mundo privado ou do mundo público.

Infelizmente, o que vemos não é isso. Infelizmente, barreiras são erguidas na seleção dos variados grupos sociais, étnicos, de gênero, de orientação social e outros, tornando essa estrutura do mundo do trabalho absolutamente desigual.

Para nós também é importante afirmar que, no mundo do trabalho de uma sociedade capitalista como a nossa, as expressões do racismo, do patriarcado e da LGBTfobia são absolutamente estruturais. Elas não são episódicas, elas não são pontuais, elas são estruturais. Por quê? Porque o Brasil viveu a maior parte da sua história com uma economia baseada no trabalho escravo da população africana, que não era reconhecida na sua condição humana, que foi subalternizada e desumanizada, que não tinha nem mesmo o reconhecimento e o pagamento pelo trabalho desempenhado. Esses quase 400 anos de escravismo colonial marcaram decisivamente a atual composição do mundo do trabalho. Daí decorre o fato de que as mulheres negras encontram-se na base da pirâmide social, no subsolo da estrutura do mercado de trabalho brasileiro. Mesmo tendo conseguido acesso à universidade e melhor formação, as mulheres negras recebem apenas 37% do que recebem os homens brancos com a mesma formação escolar e desempenhando as mesmas funções.

Observamos que a população negra logrou avanços com muita luta, ocupando reitorias de universidades, ocupando esta Casa. Houve avanços com a alteração da composição da universidade brasileira, por exemplo. A década dos anos 2000 iniciou-se com 4% da população negra no ensino superior, e hoje esse percentual chega a 13%. Entretanto, esses avanços não se refletiram no mundo do trabalho. Conquistamos as cotas, e o PROUNI atende majoritariamente à população negra - as mulheres negras representam 58% dos bolsistas do PROUNI. Conseguimos aprovar a Lei 10.639, de 2003, mas essa lei ainda está à espera de uma implementação real, para que o Brasil de fato se reencontre com a histórica contribuição da maioria do seu povo.

Entretanto, esse avanço não ocorreu no mundo do trabalho, já que na direção executiva das maiores empresas brasileiras e também na estrutura do serviço público há uma grande invisibilidade, há uma falta de representatividade da população negra.

Há uma pesquisa que já está em sua sexta edição, feita pelo Instituto Ethos, que analisa as 500 maiores empresas brasileiras. Deputada Érica Kokay, vale a pena a Câmara se debruçar sobre esta pesquisa, que diagnosticou que apenas 4% dessas 500 maiores empresas contam com pessoas negras no seu corpo de direção executiva. Além disso, apenas 0,4% delas contam com mulheres negras no seu corpo de direção executiva, que seria o mais alto grau na estrutura de direção dessas empresas. Isso significa que existe muita coisa fora da ordem. Antigamente se dizia que o principal obstáculo para a ascensão das pessoas negras no mundo do trabalho era a escolaridade. Mesmo com muita dificuldade, nós já vencemos essa barreira da escolaridade, da qualificação, da formação acadêmica. Ainda antes das políticas públicas, a população negra se desafiou e ascendeu nesses espaços. Após as cotas, foi ampliada essa ascensão de pessoas negras, e sua presença no ensino superior tornou-se uma regra, embora seja uma conquista dos últimos anos. Mas essa mesma correspondência não houve no mundo do trabalho.

A percentagem de pessoas negras entre aprendizes e estagiários é de 56%, mas, quanto mais se vai ascendendo na estrutura hierárquica, essa presença vai rareando. Na nossa avaliação, a ausência de representação da população negra nos cargos de direção não é obra do acaso, mas é consequência de barreiras muito concretas que existem no mundo do trabalho e que impedem a população negra de ascender a esses espaços. Isso ocorre, primeiro, porque muitas empresas não acreditam na existência do racismo, não acreditam que os mecanismos de seleção para sua instituição continuam propagando o racismo. Em segundo lugar, as empresas não reservam cargos de direção ou desenvolvem programas de qualificação profissional no seu interior que possibilitem à população negra ascender a esse espaço.

Há uma pesquisa da ENAP que dá conta dessa invisibilidade da população negra - sobretudo das mulheres negras - nos cargos de alta direção no âmbito do serviço público, nos Ministérios, nas autarquias e nas empresas públicas. Há bem pouco tempo nós comemoramos o fato de uma mulher ter chegado à Presidência da PETROBRAS pela primeira vez. É sempre assim: uma mulher ou um negro ascendem a essas posições de forma episódica. Isso desnuda a ausência de uma política permanente de ascensão desses grupos sub-representados tanto na estrutura do mundo corporativo quanto na do serviço público.

É recente a conquista das cotas para a população negra nos concursos públicos nas três esferas. Isso vem sendo contestado por alguns setores do serviço público, que não vêm implementando essas cotas. Observamos que alguns concursos das Forças Armadas ignoram a existência dessa lei que obriga a reserva de 20% das vagas para pessoas negras em todos os concursos públicos. Algumas Prefeituras e universidades também fazem seus concursos criando mecanismo de burla ou de desconsideração dessa lei.

Por outro lado, nós também observamos fraudes sistemáticas nessas cotas, fenômeno decorrente da ascensão de uma onda de ódio, de intolerância e de conservadorismo. Em vários Estados brasileiros, concursos públicos chegam a ter fraudes em que pessoas brancas literalmente se fantasiam de negras, fazem bronzeamento artificial, raspam o cabelo, colocam lente de contato para escurecer o olho, para poderem ser beneficiadas por uma reserva que deveria atender aos 54% de população negra excluída historicamente desses espaços.

Nós não viemos aqui exclusivamente para fazer um diagnóstico, embora o diagnóstico seja importante para que saibamos de onde partimos e para reconhecermos o problema, pois isso é fundamental para que ele seja enfrentado. Acreditamos que algumas medidas devem ser tomadas, e que esta Casa tem uma responsabilidade muito grande para alterar essa situação, tanto na esfera pública quanto no mundo corporativo, para promover a equidade. Assim, os diversos grupos étnico-raciais, de gênero e de orientação sexual estarão representados no ambiente de trabalho da mesma forma como são representados no conjunto da população.

Primeiro, em nossa opinião, é necessário levantar informações. É importante que sejam realizados censos internamente, nas empresas e nas instituições públicas, para fazer diagnósticos e traçar um perfil dos funcionários e das funcionárias.

Também é importante que sejam elaboradas políticas afirmativas que promovam a ascensão desses grupos. Se hoje a maioria das empresas não tem mulheres nem pessoas negras na sua direção, é importante que sejam reservadas vagas e que sejam desenvolvidos mecanismos de qualificação desses públicos, para que eles possam também ascender a esses espaços.

É necessário também capacitar gestores e equipes nos temas da diversidade e da igualdade, para que consigam incorporar a ideia de que a diversidade é um fator de vantagem competitiva para as empresas. Está mais do que comprovado que empresas que incorporam a diversidade, fazendo seu quadro funcional refletir a representatividade de seus elementos na população, conseguem ampliar sua lucratividade. E nós nos perguntamos: se está comprovado, por que as empresas não implementam isso?

É importante também que sejam criados, tanto no âmbito das empresas públicas quanto das empresas privadas, comitês pró-equidade para monitorar a implementação de políticas de estímulo que, de forma organizada e planejada, promovam a ascensão desse público mais diverso.

Enfim, nós queríamos trazer algumas reflexões e dizer que temos grande expectativa. Como já foi falado aqui, a desigualdade no mundo do trabalho tem uma raiz antiga.

Nós também precisamos enfrentar a desigualdade no ambiente da educação. Acho que vários palestrantes que falaram antes de mim fizeram a reflexão de que na escola, no ambiente da educação básica, no ambiente da qualificação profissional, no ambiente da universidade, esses temas precisam ser correntes, precisam ser pautados, para que essas questões também sejam refletidas no mundo do trabalho. Vemos com muita preocupação o Programa Escola sem Partido e outros projetos fascistas que querem negar a diversidade, que é uma característica muito cara à população brasileira.

Então, nós encerramos nossa fala por aqui e nos colocamos à disposição para o debate e para o conjunto do seminário, que vai até de tarde.

Muito obrigada. (Palmas.)

A SRA. PRESIDENTA (Deputada Erika Kokay) - Muito obrigada, Ângela.

Tem a palavra a Sra. Letícia Averane de Oliveira, da N4 Consultoria, por 3 minutos.

A SRA. LETÍCIA AVERANE DE OLIVEIRA - Bom dia a todos e todas.

Primeiramente, eu gostaria de dizer quão importante é esse espaço para nós.

Eu sou psicóloga e trabalho como recrutadora e selecionadora para empresas, e hoje tenho o privilégio de ter a minha própria empresa, buscando fazer a diferença no mundo do trabalho. Desde quando iniciei minha carreira nas organizações, eu percebi o tanto que o racismo, a LGBTfobia e a transfobia são presentes nesses contextos. Então, hoje nós buscamos fazer orientação profissional com esse público, para otimizar esse espaço, para dar espaço para que eles avancem no mercado de trabalho.

Além de agradecer por este espaço e este momento, que é muito importante para construirmos políticas que agreguem essas pessoas, eu gostaria de fazer algumas perguntas para as convidadas e os convidados.

Primeiro, eu gostaria de saber das mulheres trans como é participar deste evento nesta Casa, que às vezes é tão restritiva e não dá espaço para a fala, como ressaltou a Ângela. Eu queria saber como é para elas, que estão lutando e buscando mais direitos, estar aqui. Também quero saber se o machismo e o patriarcado fizeram, de alguma forma, essas mulheres trans se sentirem mais oprimidas.

A segunda questão é para o Francisco. Eu gostaria de saber se ele tem algum levantamento de professores que são funcionários públicos do MEC e são trans. Como está sendo ocupado esse espaço pelos transgêneros?

Era isso, obrigada.

A SRA. PRESIDENTA (Deputada Erika Kokay) - Muito obrigada, Letícia.

Eu vou passar a palavra para a Heliana e, em seguida, para o João Paulo.

A SRA. HELIANA HEMETÉRIO - Bom dia a todas e todos.

Eu me chamo Heliana Hemetério, sou historiadora, tenho especialização nas questões de gênero, raça e sexualidade, e no momento sou a Vice-Presidenta lésbica da ABGLT, o que é um marco dentro da questão de gênero num espaço machista. Então, ter uma trans como Presidenta e eu como Vice-Presidenta é uma releitura dessa identidade de gênero na instituição.

Eu quero conversar um pouco com o representante do Ministério da Educação.

Fiquei muito surpresa com a sua fala, quando o senhor falou na formação de professores de educação básica com a inclusão de racismo e identidade de gênero. Fico surpresa, porque todo mundo aqui sabe como se comportou o Ministério durante o Plano Nacional de Educação e como estão sendo construídos os planos estaduais de educação e os planos municipais de educação, com a completa exclusão da palavra “gênero”, achando que gênero era somente relativo às mulheres trans. A transfobia é gritante na nossa cara o tempo todo.

Não se aceita mais, na educação, quererem tirar a didática a respeito da África. Isso é racismo!

O senhor fala de uma formação didática. Eu quero saber: didática para quem? Como será monitorado isso? Como vocês vão lidar com a questão de educação e religião neste momento totalmente fundamentalista, em que eles estão acabando com as demais religiões e propagando todos os tipos de preconceito nas escolas?

Não é preciso perder tempo em fazer curso de EAD de Direitos Humanos LGBT, porque nós fizemos isso lá atrás, dentro da Secretaria de Direitos Humanos - SDH. Nós temos um curso maravilhoso prontinho! Ninguém precisa inventar a roda, porque a roda já está aí.

Então, eu quero saber como vocês vão fazer esse milagre de incluir essas questões nos Municípios e nos Estados, que têm posturas completamente fundamentalistas, conservadoras, racistas, transfóbicas e misóginas. Eu acho que nem na Idade das Trevas nós vimos o que estamos vendo agora.

Era só isso, obrigada. (Palmas.)

A SRA. PRESIDENTA (Deputada Erika Kokay) - Obrigada, Heliana.

Passo a palavra para o João Paulo e, em seguida, para a Ieda. (Pausa.)

O SR. JOÃO PAULO RIBEIRO - Desculpem-me a demora. Aqui, não é muito o espaço do povo, nós não estamos acostumados com isso. Nós estamos aqui, Sra. Presidenta, porque V.Exa. e o Deputado Orlando nos capacitam para podermos algumas vezes usufruir desse espaço privilegiado para fazer as nossas indagações.

Eu sou João Paulo, da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil - CTB e da Confederação dos Servidores Públicos do Brasil - CSPB. Eu sou um dos fundadores da UNEGRO e tenho grande orgulho de estar hoje sendo presidido por uma mulher negra com a capacidade que tem a minha amiga Ângela Guimarães.

Minha pergunta, Francisco, é sobre a questão de gênero. Por sermos ativistas nas universidades públicas, nós somos pioneiros em utilizar o nome social. O MEC, hoje, não abre negociação...

Primeiro, Francisco, eu quero lhe agradecer por estar presente. Nós temos dificuldades, temos problemas, temos divergências, mas o diálogo tem que acontecer. Então, quero parabenizá-lo, primeiro, porque você veio. Muitas vezes, o Governo não vem dialogar conosco. Então, eu já fico feliz. Eu já tinha um diálogo muito grande com seu antecessor - nós trabalhamos no Programa Brasil sem Homofobia e dialogamos pela Federação de Sindicatos de Trabalhadores em Educação das Universidades Brasileiras - FASUBRA. Quanto à dificuldade ressaltada pela Heliana para promovermos este debate, eu acho que você poderia ser um interlocutor na discussão sobre a universidade pública, para que o debate ocorra. Então, primeiramente, eu queria lhe agradecer a sua presença e dizer que a minha pergunta é a que a Heliana fez.

Régis, eu sou da UNICAMP, trabalhei lá. Quando você falou de Campinas, senti saudade, embora eu esteja na Bahia hoje - está bom lá. Você me despertou uma curiosidade quanto ao fim do assunto. Eu queria saber o que aconteceu com a menina, com a Debora, no final. Você falou que o senhor foi indagado, que ela foi questionada, mas você acabou não falando do desfecho da questão da Debora, que transitava entre os gêneros.

(Intervenção fora do microfone. Inaudível.)

O SR. JOÃO PAULO RIBEIRO - Pareceu que você falaria do tema, o que acho muito importante, mas parece que acabou não concluindo. Diga qual é o espaço, quais os locais onde podemos fazer as denúncias, para que também saibamos. Eu até fiquei em dúvida. Como vamos ficar nessa situação? Como devemos nos comportar? Respeito seu ponto de vista, mas até mesmo a pessoa não sabia como se comportar. Ela cumprimentou a Débora como da outra vez. Eu queria que você fizesse esse esclarecimento, porque acho que faltou um feedback.

Parabéns pela grande luta de vocês.

A SRA. PRESIDENTA (Deputada Erika Kokay) - Passo a palavra à Ieda.

A SRA. IEDA LEAL - Parabenizo o Deputado Orlando.

Andrey, obrigado pelo convite que me fizeram.

Este é um momento fundamental. Lamentavelmente, hoje não há dúvida por que o representante do MEC, deste Governo, não tem o que falar. Infelizmente, algumas políticas muitas caras para nós estão sendo desmontadas.

Francisco, acho que podemos fazer a interlocução, mas volte ao Ministério e diga: “Está tudo errado. Não podemos desmontar essas políticas. É preciso partir do que já foi construído”. Isso foi construído com muita luta e com muita sabedoria, por gente especializada neste assunto. Não era qualquer pessoa que estava lá discutindo. Precisamos organizar isso.

Taya, você trouxe alguns elementos que reforçaram a minha convicção de que nós, negros, estamos lascados. A Daniela fala assim: “Para eu assumir, precisei, primeiro, passar por um processo. Depois de 35 anos, pude fazer a minha transição”. Nós, negros, talvez nunca façamos essa transição, porque não vamos ter as condições objetivas que você teve, porque você não é uma pessoa negra. Então, a dificuldade é muito maior. Eu fico imaginando como vai ser difícil. Você trouxe os números, dizendo que nós somos a maioria, e nós estamos com muita dificuldade.

Agora, o que eu acho pior, e queria muito que vocês pudessem falar... A Ângela falou muito bem, e o Régis deu uma pincelada nessas histórias jurídicas. Acho que essas histórias são legais, mas precisam ser acompanhadas de outra ação, que vamos discutir à tarde. Nós não podemos sair daqui hoje sem outra atividade.

Como é essa simplificação da adesão? É assim: “Então, sou revolucionário. Eu sou homossexual, sou assumido, botei peito, quero casar, quero só mudar de nome”. Essa é uma adesão ao padrão de sociedade que existe. As pessoas fazem essa adesão. Mas não é isso! “Ah, eu quero casar na Igreja.” A Igreja nos mata o tempo todo! Entretanto, vejo pessoas querendo fazer essa ação de união, que é política para mim. Mas essa adesão a uma sociedade que nos massacra o tempo todo não é política. Como vocês veem isso? Quero saber, para que eu possa começar a pensar em outras estratégias. Eu não estou dizendo que isso é errado. Mas não é só: “Agora eu sou João”. Não é só isso, entendeu? Eu preciso entender que posso ser Ieda, com a minha possibilidade de amar outra pessoa sem fazer esse sacrifício de largar o nome. Às vezes, o nome é também uma possibilidade política de enfrentamento. Mas parece que ficamos correndo atrás das miudezas da sociedade, esta sociedade que nos mata o tempo todo, que nos inviabiliza. Então, eu queria que vocês falassem sobre isso.

Eu gostei da pesquisa. Depois, eu gostaria de conversar com você, porque a forma que fez a pesquisa ficou mais saborosa para mim. Gostei muito disso.

Quero parabenizar todos vocês. Eu acho que este é um momento extraordinário para traçarmos, à tarde, um jeito de fazer com que esta sociedade nos respeite muito mais. (Palmas.)

A SRA. PRESIDENTA (Deputada Erika Kokay) - Passo a palavra ao Andrey, e depois devolvo a palavra aos integrantes da Mesa.

O SR. ANDREY LEMOS - Bom dia a todas e a todos.

Eu sou Andrey Lemos, historiador de formação, servidor público federal e Presidente da União Nacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais - UNALGBT.

Quero saudar a Mesa e agradecer ao Presidente desta Comissão, o Deputado Orlando Silva.

No seminário que fizemos nesta Casa em junho, nas diversas Mesas, apareceu com bastante força, nas falas dos ativistas e dos representantes institucionais, a importância de fazer este tipo de debate sobre o mundo do trabalho.

Quero saudar a minha companheira e camarada Ângela Guimarães, Presidente da União de Negras e Negros pela Igualdade - UNEGRO, entidade da qual eu tive a honra de ter sido o primeiro Coordenador Nacional LGBT. Saúdo o meu querido Régis Vascon, a Taya Carneiro e a Daniela Cardozo - duas companheiras de luta -, o representante do MEC e a nossa querida Deputada Erika Kokay, Parlamentar bastante comprometida com este debate, assim como o Deputado Orlando Silva.

A Ieda traz uma importante reflexão para nós LGBTs, sejamos negros ou brancos. Existe uma escala de vulnerabilidade, porque, além de ser LGBT, ser negro faz com que ocorra uma interseção de opressão. Temos que enfrentar, lutar e resistir a esta sociedade sexista, racista, LGBTfóbica que fica o tempo todo determinando, a partir das nossas identidades, o lugar que podemos ou não ocupar. Muitas vezes, por querermos ser aceitos e por querermos ser incluídos, fazemos opção por determinadas lutas que talvez sejam menores do que as lutas pelo direito à vida, à identidade, à liberdade e à democracia. Quando a Ieda trouxe essa reflexão, eu entendi que ela quis dizer o seguinte: às vezes, a pessoa está brigando por algo que parece pequeno, mas que, na sua dimensão, ocupa um determinado lugar na identidade dela em relação à luta pela cidadania. Então, muitas vezes, e durante muito tempo, o movimento LGBT brigou pelo casamento, que é algo institucionalizado em uma sociedade extremamente burguesa. É esta mesma sociedade tenta normatizar as relações, porque se utiliza do casamento, do nascimento, de vários outros instrumentos institucionais para diferenciar as pessoas, para determinar o lugar delas no acesso ao capital, aos bens de consumo, aos bens culturais e, consequentemente, à cidadania. E, às vezes, deixamo-nos levar por determinadas reivindicações que talvez sejam menores do que o enfrentamento real à opressão imposta por este modelo de sociedade que planta a desigualdade, por si só, por sua própria existência.

Então, eu acho que este é um debate importante para os movimentos sociais e também para as instituições públicas. O modelo de sociedade que defendemos determina também a força da exclusão. Portanto, o modelo de sociedade, o modelo de educação, o modelo de acesso ao mundo do trabalho vai possibilitar ou não a inclusão dessas pessoas. Portanto, eu considero importante pensarmos sobre isso.

Para finalizar a minha fala, aproveitando a presença do representante do MEC, quero dizer que sou professor de formação, fiquei 8 anos em sala de aula e agora estou na gestão de saúde. Tenho muitas amigas e amigos professores, educadores. Parece que o campo da educação tem sido prioritário não só para a promoção do debate sobre cidadania e direitos humanos, mas também como espaço legítimo de trabalho. Parte da população LGBT e da população preta busca esse lugar, porque talvez as licenciaturas tenham sido os primeiros espaços para a população pobre, para a população excluída. A posição de professor, de educador e de educadora possibilitou a ascensão e a inclusão de várias pessoas.

Muitas pessoas, Daniela, transitaram depois do concurso público. Para essas pessoas, talvez, tenha sido menos difícil. E quanto às pessoas que transitaram na sua adolescência e têm dificuldade de acessar o trabalho? É necessário criar uma política voltada não só para o acesso e a permanência dos estudantes LGBTs, mas também para os profissionais LGBTs que estão nas escolas e nas universidades deste País. É tarefa primordial do MEC assumir esse compromisso, essa responsabilidade de enfrentar essa discriminação. Mas como enfrentar essa discriminação sem uma política inclusiva, tirando disciplinas importantes do ensino médio e sucateando as universidades, reduzindo os recursos e também as bolsas dos nossos estudantes, dos nossos pesquisadores?

Obrigado. (Palmas.)

A SRA. PRESIDENTA (Deputada Erika Kokay) - Obrigada, Andrey.

Seguindo a ordem de inscrição, passo a palavra à Taya Carneiro, por 3 minutos.

A SRA. TAYA CARNEIRO - Letícia, como são poucos minutos, eu vou misturar um pouco as respostas, porque acho que elas dialogam entre si.

Como mulher transexual, eu compreendo que temos muita dificuldade de ocupar os espaços, principalmente os espaços políticos, onde dificilmente vemos mulheres transexuais. Geralmente, as mulheres transexuais estão em situação de prostituição. É naquele lugar que a sociedade nos coloca.

Eu estou aqui graças ao Andrey, que nos convidou e que é um parceiro enorme dentro do movimento trans do Distrito Federal, e também à Deputada Erika Kokay.

Como foi denunciado pelo Régis, somos tão vulneráveis que todas as pessoas pesquisadas por nós não chegaram nem a denunciar as situações terríveis de violência por que estavam passando. Então, o trabalho que estamos fazendo é, basicamente, falar para essas pessoas que, além de poderem ser quem são, elas têm direito a acessar os serviços, têm direito a acessar políticas públicas. Estamos fazendo este trabalho de empoderamento.

Em parceria com as Nações Unidas e com várias instituições, nós fizemos um curso do qual a Deputada Erika Kokay participou. Esse grande evento nas Nações Unidas foi uma iniciativa de transformação, e agora as pessoas trans estão conseguindo saber que podem ocupar esses espaços e que devem fazê-lo.

Ieda, eu ia me aprofundar mais sobre a interseccionalidade na última parte da pesquisa, em que falamos que uma mulher trans não deixa de ser mulher e não deixa de ser trans. Uma mulher trans negra não deixa de ser mulher e não deixa de ser negra. Uma mulher trans negra da periferia não deixa de ser mulher, não deixa de ser trans, não deixa de ser da periferia e não deixa de ser uma pessoa com baixa renda. Uma das grandes dificuldades é o Estado reconhecer isso, porque não existem muitos dados. Existem dados do IDH, baseados em números do IBGE, segundo os quais as pessoas mais vulneráveis na sociedade brasileira são as mulheres negras e rurais. Isso certamente não abrangeu as mulheres trans. Certamente, se for feita pesquisa de mulheres trans negras, vai se constatar que elas estão no final.

Uma das coisas que motivaram a nossa pesquisa é o Estado não produzir dados sobre identidade de gênero. Como vamos nos localizar dentro da sociedade se o Estado não está produzindo esses dados? Fizemos essa pesquisa porque queremos mostrar que é possível dizer qual a situação das pessoas trans dentro do trabalho. Vocês têm que olhar isso, isso e isso! Façam a pesquisa e analisem! Por que as pessoas trans dentro do trabalho estão tendo que ser uma pessoa que elas não são para conseguirem sobreviver? Isso é ser travesti: a pessoa se mostrar como outra pessoa. Não falo em travesti como identidade. Falo em travesti como pessoa que tem que se travestir duas vezes para conseguir sobreviver num espaço extremamente problemático. Inclusive, descobrimos que muitas pessoas trans têm formação profissional pelo PRONATEC, mas mesmo assim não conseguem trabalhar, como disse a companheira Ângela em relação à situação das pessoas negras.

Então, não adianta, temos que educar o mercado de trabalho, mas também esclarecer às pessoas que a violência vai acontecer de qualquer forma, porque ela é estrutural. Temos que mostrar para as pessoas trans que elas podem denunciar, podem acessar uma política de trabalho, podem acessar um processo e podem dizer: “Eu não aceito você não me deixar usar o banheiro”. Ninguém sabe que isso está ocorrendo. “Eu não aceito não poder usar o meu nome”. Temos que falar isso e trabalhar muito próximos das pessoas trans, e com todas. Além de trabalhar com os empregadores, temos que ter um olhar muito específico para empoderar todas as pessoas trans. Não vamos deixar ninguém para trás!

É isso.

A SRA. PRESIDENTA (Deputada Erika Kokay) - Muito obrigada, Taya.

Passo a palavra para Daniela Cardozo Mourão, seguindo a ordem anterior.

A SRA. DANIELA CARDOZO MOURÃO - Primeiramente, eu preciso agradecer pelo convite e já responder à pergunta. O fato de haver pessoas trans aqui no plenário é algo que me dá esperança, é algo que me deixa animada a continuar lutando, a continuar mudando.

Eu sei que, se não fizermos nada, nada vai mudar. Mas eu me sinto bastante esperançosa em poder estar com vocês dialogando sobre as questões trans, que tanto me afetam também. O que me deixa um pouco receosa, até um pouco triste, é o fato de que todas as mudanças que nós conseguimos foram via Executivo ou via Judiciário. Não sai lei do Legislativo. Eu sei que há Deputados lutando, acho importante continuar a luta, continuar brigando, mas não vejo ações que se originaram do Legislativo.

Falando em ações, há uma história que nós ouvíamos. Imagine que você está num rio e vê passar um monte de crianças se afogando. Você tem duas opções: ou tira as crianças que estão se afogando ou vai até a cabeceira do rio ver quem está atirando as crianças. O que é mais importante fazer? Eu respondo. Os dois são importantes. É preciso ter gente brigando pelo nome social, pelo acesso ao banheiro. Lá em cima, também é preciso ter gente brigando pela mudança da ideologia escolar, para que haja transformações de forma mais tranquila.

Respondendo ao Régis, eu acredito que nada é simples. Tudo é difícil, tudo tem que ser pensado. Mas também não adianta ficarmos inertes. Por exemplo, nós poderíamos começar a olhar a legislação de países como Argentina, Colômbia, França, Portugal, que permitem a mudança do nome de uma forma tranquila, sem ser necessária ação judicial.

Nós precisamos lembrar que a nossa lei é de 1973. Não havia sistema de informação, não havia nada integrado. Desse modo, em qualquer sistema de informação, eu não sou Daniela nem meu antigo nome, eu sou 4.697.637. Há um monte de homônimos. Com estudos, com certa preparação, eu não vejo por que a pessoa pode mudar de endereço, mas não pode mudar de nome. Isso deveria ser algo meio automático.

Eu queria contar também outra história que aconteceu na universidade. O professor que cuida do sistema de informação do departamento estava passando e foi chamado: “Você viu o caso da Daniela? Vai ter que mudar o nome no sistema. Como é que vamos fazer isso?” A resposta dele foi a seguinte: “Nós temos que fazer”. A resposta não foi: “O sistema não permite”. A resposta não foi: “Ah, não dá”. A resposta foi: “Nós temos que fazer”.

E eu acho que essa tem que ser a nossa postura diante das dificuldades da população LGBT. Vamos estudar, vamos analisar, vamos fazer tudo o que for possível para melhorar a situação dessas pessoas.

Obrigada. (Palmas)

A SRA. PRESIDENTA (Deputada Erika Kokay) - Muito obrigada, Daniela.

Vou passar a palavra para o Francisco.

O SR. FRANCISCO MORAES DA COSTA MARQUES - A primeira pergunta é da Letícia, a respeito de professores trans, se há um levantamento do número de professores na rede. Não, eu desconheço que haja esse levantamento. Há números a respeito dos candidatos do Exame Nacional do Ensino Médio - ENEM que usam o nome social. Isso, sim. Mas de professores da rede, não.

Passo à pergunta feita pela Sra. Eliane e pelo Sr. João Paulo. A primeira é a respeito do curso de formação continuada. Esses cursos vão ser oferecidos aos professores de educação básica. São cursos de educação em direitos humanos com ênfase na questão da diversidade, que é a porta de entrada para se tratar todos os assuntos. Este é um projeto que as universidades encaminharam ao Ministério de Educação - MEC. As propostas estão sendo analisadas e vão ser implementadas a partir do início do ano que vem.

Em relação ao curso de educação a distância, eu não sei se me fiz compreender.

(Intervenção fora do microfone. Inaudível.)

O SR. FRANCISCO MORAES DA COSTA MARQUES - Sem dúvida nenhuma.

Nós temos um diálogo muito próximo com o Ministério de Direitos Humanos - MDH. Acho que não me fiz entender pelo seguinte: não se trata de um curso de educação a distância voltado para os professores exclusivamente. E não se trata exatamente de um curso, são conteúdos a respeito de direitos humanos e diversidade.

Há uma parte direcionada a um público amplo - diretores, gestores de escola, pais, a alunos, enfim, cidadão em geral que queira entrar na plataforma e fazer o curso - e há conteúdos específicos para cada um desses perfis. O professor que navega pela plataforma terá um certificado, mas não é um certificado de curso que lhe dê direito a progredir na carreira mais rapidamente. Enfim, é um primeiro passo.

A respeito das resistências que são encontradas nos Estados e nos Municípios, a exemplo de Campinas, há que se respeitar e se observar - não há uma maneira diferente de se fazer - a autonomia dos entes federados que existem no nosso regramento, sem dúvida nenhuma. Mas há mecanismos para que essas leis sejam questionadas, inicialmente no âmbito estadual. Os partidos políticos podem entrar com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade - ADI, por exemplo. O MEC, infelizmente, pode acompanhar esses desvios quando fizer monitoramento e avaliação do Plano Nacional de Educação, mas não pode se intrometer na legislação de um ente federado.

A SRA. PRESIDENTA (Deputada Erika Kokay) - Mais alguma coisa?

O SR. FRANCISCO MORAES DA COSTA MARQUES - Eu acho que era isso.

A SRA. PRESIDENTA (Deputada Erika Kokay) - Então, eu quero agradecer ao Francisco.

Passo a palavra ao Régis Vascon e, em seguida, para a Ângela.

O SR. RÉGIS VASCON - Eu vou do final para trás. Não sou advogado constitucionalista. A minha área é Direito Público e Direito Criminal, como disse antes, na carreira forense. Mas, na minha humilde opinião, na minha franca opinião, nada pode se sobrepor aos direitos humanos; nada, nem a soberania do Estado.

Então, com a devida vênia, eu acho que a posição, a postura, que o MEC traz hoje à Mesa já dita o MEC que nós temos: não respeita direitos humanos LGBT, direitos humanos das pessoas negras.

A presença do representante do MEC, logicamente, é muito bem-vinda - obrigado -, é importante, como colocou o colega da UNICAMP, para promover o diálogo, mas para nós é muito pouco. Para quem está sofrendo essas violações de direitos que eu trouxe, como mostram as denúncias que recebi no centro de referência LGBT; para quem não tem como sustentar o pai e a mãe porque está desempregado; para quem está apanhando na rua, esperar traçarem um plano, pensarem um plano que será posto em prática em 8 meses, 1 ano ou 2 anos... Essas pessoas já terão morrido.

Você liga a TV, você lê jornais e vê que o Brasil é o país que mais mata pessoas LGBT, inclusive, travestis e transexuais. Então, não temos tempo! O tempo que o movimento social LGBT pede é para quando? É para ontem, e o MEC está pensando ainda.

Agora, em relação a símbolo de resistência, eu trago aqui a história de Maria Bonita e Lampião, que são dois espíritos, duas entidades de umbanda, que foram símbolos de resistência contra o coronelismo. Então, como a colega Ieda colocou, como fazemos o enfrentamento na questão trans? Sobre o casamento igualitário parece que estamos repetindo o que o Estado fala. Como diria Foucault, o controle dos corpos-espécies. O casamento é uma forma de o Estado controlar os corpos-espécies, e estamos caindo no mesmo controle, até mesmo na questão do registro público. Para que há registro público? Para que há registro público? Eu não tinha adequado meu nome até hoje. Estou sendo forçado a adequar o meu nome inclusive por uma questão relativa à OAB, entre outros problemas, e também porque, mesmo tendo qualificação... Vamos falar só de população LGBT. Se eu atender no escritório pessoas LGBT, ainda assim parece que nós travestis e pessoas transexuais, por melhor qualificação que nós tenhamos - e temos aqui um exemplo de qualificação, que é o da Alessandra, do Rio de Janeiro, uma mulher negra fantástica que é poliglota, entre outras coisas -, não conseguimos avançar na carreira. Por quê? Por sermos trans.

Na disputa por uma vaga de emprego com uma pessoa heterossexual ou mesmo com uma pessoa homossexual - uma mulher lésbica ou um homem gay -a pessoa travesti e a pessoa transexual não conseguem a vaga.

Só para completar, Sra. Presidenta, é importante a gente falar também da política de Estado. Por que eu saí do Centro de Referência LGBT? Eu fui tirado do Centro de Referência LGBT pela atual administração da Prefeitura Municipal de Campinas. Por quê? Porque o meu trabalho, a minha competência - essa é a verdade - atrapalhava a administração pública, porque eu tinha mandado vários processos para as comissões processantes da Lei nº 10.948, inclusive contra a Prefeitura Municipal de Campinas. “Vamos tirar esse cara daí, porque ele está atrapalhando”.

E o que fez a Prefeitura Municipal de Campinas? O ano passado, não deu apoio à parada. A PM, no meio da parada, bateu em todo mundo, pôs todo mundo para correr, acabou com o evento. Isso foi para o Ministério Público. Está parado lá até hoje. Este ano, a Prefeitura deu uma pequena estrutura: banheiro químico. Nem banheiro químico, que é uma questão humana, a Prefeitura tinha dado. Onde a pessoa vai fazer suas necessidades? Na praça? Depois, o gestor público, a administração pública, xinga o movimento LGBT, fala mal do movimento LGBT, porque urinaram na praça, mas onde estão os banheiros públicos? Mas vemos, por exemplo, em eventos da comunidade evangélica, que não é um evento por direitos humanos, 50 ou 60 banheiros.

O que está acontecendo neste País? Se for uma questão de laicidade do Estado, o evangélico tem direito a banheiro público, e eu que sou LGBT não tenho. Tenho de fazer xixi na praça. Então, temos de pensar.

Eu tenho muita coisa para falar, mas, só para terminar, em relação ao diálogo com o MEC, eu dei uma palestra para 70 professores na UNICAMP. Eles me fizeram questões práticas. “Régis, nós temos esses problemas na sala de aula o que fazemos?” Uma das coisas que se discutiu lá muito foi um canal direto de denúncia. Não basta só capacitar os professores, você tem de abrir diálogo nos casos práticos, porque você capacita, mas, ainda assim, o professor não se sente instrumentalizado para discutir um caso prático, por exemplo, com uma psicóloga.

Então, o que se tem de fazer? Um canal direto - talvez não seja denúncia o nome. Se um professor tem uma necessidade, vamos supor na UNICAMP, onde uma transexual está sofrendo discriminação, liga no canal ou faz um contato: “O que nós fazemos?” Se o Centro de Referência LGBT de Campinas estivesse sendo chamado tratar de um problema na escola municipal, responderia: “Vou mandar o Régis aí para dialogar com vocês, para ver se apontamos uma solução”. Precisamos disso.

Não adianta só capacitar. E se a capacitação não for continuada, adianta menos ainda, porque a sexualidade não é estática, ela está mudando. Quando eu entrei no movimento LGBT, não discutíamos a identidade transgênero. Hoje, discutimos. Então, a sexualidade não é estática, não é essa caixinha de que Foucault falava, que o Estado pensa que é, entre feminino e masculino, entre heterossexual e homossexual. Não é, entendeu?

Por último, o Estado de São Paulo tem uma coisa que acho muito importante. Eu fui chamado pelo Estado de São Paulo para dar uma palestra para os professores mediadores. Por que o MEC não usa esse recurso de capacitar professores mediadores no Brasil todo? São eles que vão fazer o diálogo com a direção da escola e com os professores da escola.

A SRA. PRESIDENTA (Erika Kokay) - Obrigada.

Passo a palavra à nossa última expositora, Sra. Ângela Guimarães, Presidenta Nacional da UNEGRO.

A SRA. ÂNGELA GUIMARÃES - Obrigada, Deputada.

Primeiro quero agradecer a oportunidade de participar deste seminário, de trazer temas tão relevantes que vimos tratando em nossas instâncias, reuniões, congressos e encontros.

A nossa expectativa é que essa discussão se desdobre aqui em propostas de legislação e de fiscalização, também do Legislativo, em relação à implementação de políticas afirmativas de inserção da população negra, de mulheres, da população LGBT no mundo do trabalho.

Em segundo lugar, quero dizer que, neste ambiente de aprovação dessas reformas a que já nos referimos, de discussão sobre o Escola sem Partido, de aprovação da reforma do ensino médio, de retirada da discussão sobre gênero dos planos de educação, vemos pouca perspectiva. Imaginamos que precisamos concentrar forças na sociedade para que haja uma reversão dessas pautas negativas que aniquilam direitos das maiorias da população.

Em terceiro lugar, quero dizer que para nós é importante que, tanto no serviço público quanto no mundo corporativo, algumas medidas sejam de fato implementadas, para dar visibilidade a essa ausência de diversidade no mundo do trabalho.

Então, é importante que sejam realizados censos que visibilizem qual é o retrato dessas empresas e do serviço público em relação à representação de mulheres, da população negra e da população LGBT.

Acreditamos que também é importante que haja reserva de vagas, sim, para esses públicos nos espaços de supervisão, de coordenação e de direção e nos conselhos de administração das empresas e do serviço público; que haja formação permanente de gestores e de equipes para os temas de diversidade e de igualdade. Não basta só que aquele corpo, que aquelas pessoas que são consideradas estranhas àquelas instâncias de direção sejam promovidas, mas que haja uma formação permanente para que o conjunto das equipes saiba como lidar com uma mulher trans presidindo o conselho de administração de uma empresa, com uma mulher negra num espaço de direção.

Também é importante para nós que, em cada um desses espaços, sejam elaborados planos de ação afirmativa e que sejam instituídos comitês pró-equidade, que possam constituir esses planos, monitorá-los, fiscalizá-los e apresentar para a sociedade o resultado dessas medidas.

Por fim, quero reafirmar o nosso compromisso com o estado laico, com o enfrentamento das intolerâncias e do fundamentalismo, com o enfrentamento e a derrubada desse golpe que tomou de assalto o nosso País. Por nenhum direito a menos para as mulheres, para a população negra, para as comunidades quilombolas, indígenas, para a população LGBT!

Precisamos derrubar esse golpe, conquistar as Diretas Já e que o povo volte a estar no comando do Brasil!

Muito obrigada. (Palmas.)

A SRA. PRESIDENTA (Deputada Erika Kokay) - Estamos chegando ao fim desta primeira Mesa, e, de pronto, já convido todos e todas para estarem conosco a partir das 14 horas, no Plenário 14, para que possamos dar continuidade ao seminário.

Eu queria, mais uma vez, parabenizar o Deputado Orlando Silva por ter proposto este seminário. Nós estamos falando de uma atividade essencialmente humana e transformadora da realidade, que é o trabalho. Ele transforma a realidade, por isso tem uma marca humana. A relação do trabalho é estruturante porque as nossas outras atividades, em grande medida, refletem as nossas relações de trabalho, seja de felicidade, seja de tristeza. Então, o trabalho é estruturante.

Eu fico pensando muitas vezes em Faulkner, que disse que lhe causava estranheza o fato de nós trabalharmos dia após dia, mês após mês, ano após ano, décadas após décadas. Então, nós vamos carregando as marcas do trabalho nas nossas vidas, nas outras atividades inerentes à nossa própria humanidade.

Nesse sentido, se nós temos essa condição estruturante do trabalho, ele não pode ser um local onde perdemos os tendões, os sonhos. Ele não pode ser um local onde não nos realizamos como seres humanos. Ele não pode ser um local onde negamos a nossa própria humanidade. Dentro de cada trabalhador há um ser humano que precisa se libertar.

Então, vejam o que é um trabalho que nega a nossa identidade, a nossa forma de ser, a nossa condição. Como dizia a Daniela, não é uma opção, é uma condição, é uma forma de ser, é como nós somos. Há pessoas que nascem num corpo que não lhes pertence. Isso provoca sofrimento, porque o corpo é a forma como vemos o outro, como nos vemos, como sentimos a energia vital da nossa própria humanidade. Sem corpo nós não conseguimos nos associar com todos os sentimentos e às condições de existência humana.

Eu lembro muito a fala de uma gestora, que dizia que não conseguia se olhar no espelho. Ela só conseguiu se olhar no espelho no momento em que passou pelo processo transexualizador. Aí ela disse: “Isso sou eu. Aqui estou eu”. E o espelho que ela tinha em casa era um espelho em que ela via apenas os olhos.

E, no processo de percepção da sua própria identidade, há a reação da família. Na transexualidade, não há armário. Ela se expressa como uma condição que está dada, e as pessoas sofrem, portanto, uma reação por parte da própria família.

Ela dizia: “A minha família me tratou com hormônio masculino e me jogou em atividades masculinas”. As atividades masculinas são para reafirmar, porque há um binarismo na sociedade que emburrece a nossa vida. A sociedade não é binária, com feminino e masculino, feminino e masculino, que são binários; com Deus e o diabo; com o preto e o branco. Enfim, nós somos humanos. E, na nossa humanidade, nós transitamos entre as condições, até porque só evoluímos a partir dos contrapontos, a tese e a antítese, que vão gerar a síntese, que dialeticamente vai se transformando em novas teses. Portanto, o ser humano não pode ser considerado de forma binária.

Eu penso que o binarismo é um pouco a necessidade que as pessoas têm de se firmarem, é a necessidade de ordem. Acho que há uma cultura do medo sendo construída deliberadamente. E essa cultura do medo tira os espaços coletivos, porque são nesses espaços que nos fazemos sujeito coletivo. E esses espaços públicos coletivos, como as praças, estão sendo destruídos pelo medo. Nessa cultura do medo, crescem as soluções de força, como as grades, a família única, a força e a ordem. E essa ordem vai se impondo por um medo que faz com que as pessoas busquem soluções que as façam se sentir mais seguras.

Esse é um processo muito violento. Por isso, há o ataque à escola, porque ela resiste como espaço público e como espaço diverso. Ela é naturalmente diversa, é espaço de diversidade. Ela tem uma capilaridade que outras políticas não têm. Ela dialoga de forma tão permanente com a família e com a comunidade, o que, talvez, nenhuma outra política o faça. E as escolas estão sendo atacadas sobremaneira porque precisam submetê-las à ordem. Então, o Escola sem Partido significa tirar a diversidade, a diversidade do pensamento, a diversidade sexual; significa tirar o elemento básico para que reconheçamos a nossa humanidade. Não reconhecemos a nossa humanidade sem a diversidade.

Nesse sentido, é lamentável que nós tenhamos uma pessoa como o Alexandre Frota, que é um estuprador assumido, pelo menos tripudiou e fez pilhéria do estupro, que é um processo violento que atinge a maioria das pessoas do gênero feminino, alçado a uma condição de respeito por parte do Ministério da Educação, que inclusive tenha se utilizado do espaço do Ministério da Educação ou do espaço de relação com o Ministro, para discutir o Escola sem Partido. E o Escola sem Partido é a escola em que não se reconhecem saberes e não se reconhece o outro. É absolutamente violenta.

E ela tem uma violência que é maior do que a da ditadura, penso eu, porque na ditadura havia também os agentes do Estado que se disfarçavam e que iam fiscalizar se havia alguém que estivesse falando de fome ou estivesse falando hoje de gênero. Não é possível: não se pode mais falar a palavra gênero! Há uma generofobia, há uma fobia morfológica. Não se pode falar a palavra gênero.

Hoje essa função que era de agente do Estado, o arbítrio, eles querem repassar para as crianças, para os adolescentes, para os alunos. São os alunos que vão fiscalizar os professores. Assim se destrói uma relação de vínculo porque, pelo projeto, em toda escola, em toda sala de aula, haverá um cartaz dizendo para o aluno ficar atento e para o aluno denunciar qualquer tipo de menção que não seja a reprodução do conteúdo. Como se fosse assim: aqui existe um saber e aqui existe um não saber. E eu vou despejando os conteúdos, e a isso se resume a educação. É um crime com a política mais generosa e mais fundamental para a qualidade de outras políticas.

Portanto, eu penso que vamos ter que fazer essa discussão no mundo do trabalho e no mundo da escola. Penso eu que nós deveríamos inverter o ônus da prova. A empresa tem que provar que ela não discriminou ou na ascensão ou no acesso ao trabalho. Ela é que tem que provar quantas pessoas trans, quantas pessoas negras, quantas mulheres existem na empresa. O ônus da prova para a pessoa que teve o direito violado é extremamente difícil. Você vai dizer o seguinte: “Eu não fui contratada porque eu sou trans”. Mas como é que você prova isso?

Então, o ônus da prova teria que ser do empregador, penso eu. Nós deveríamos avançar nessa perspectiva e deveríamos ter planos. Um projeto do Governo Lula ainda e que depois foi desenvolvido pela Dilma também, o Pró-Equidade de Gênero, é absolutamente fundamental porque a pessoa se compromete. Há um diagnóstico e, a partir do diagnóstico, você se compromete com um plano de metas e presta contas. As empresas teriam que prestar contas sobre a diversidade das pessoas que trabalham naquela empresa.

Portanto, eu diria que essa discussão do trabalho é fundamental tanto para a discussão étnica quanto para a discussão da LGBTfobia, para que nós não tenhamos isso que foi dito aqui pela Daniela: “Eu me coloco no mundo do trabalho, eu me firmo no mundo do trabalho” - não é a primeira pessoa que fala isso.

Eu tive a oportunidade de ver uma mulher trans, uma advogada, uma empresária que dizia o seguinte: “Primeiro eu me firmei, depois eu assumi a minha transexualização”. E ela dizia mais do que isso: “E eu só consegui fazer isso quando meu pai faleceu, porque eu não conseguiria fazer isso com o meu pai vivo”. Por que as pessoas têm que esperar para ser como são, para que elas possam ter a liberdade de ser? Isso me lembra de Leminski: “Isso de ser o que se é vai nos levar além”, ou seja, sermos o que somos.

Então, eu encerro apenas dizendo da importância deste seminário para a questão estruturante.

Eu penso que, quando os indígenas vão trabalhar, saem por inteiro: vão levando seus ancestrais, levam sua cultura. Eles se levam por inteiro. Muitas vezes, nós temos que nos despir da nossa própria existência para adentrar o mundo do trabalho. Que processo violento!

E penso que a liberdade de ser em uma sociedade tão coisificante do ser humano é revolucionária. O movimento LGBT e o movimento feminino, ou melhor, o movimento das mulheres e o movimento LGBT, que reivindicam a liberdade de ser, sem dor de ser como são, são transformadores, como não eram há 30 ou 40 anos.

E o que nós estamos percebendo é que a própria comunidade LGBT começa a romper seus próprios limites, porque havia uma invisibilização grande das lésbicas, e há uma invisibilização grande da população trans. Agora nós temos várias iniciativas para dar visibilidade à população trans. Há uma diversidade dentro do movimento de diversidade ou movimento de liberdade sexual que está em curso neste País.

Então, eu apenas concluo que movimento que fala da liberdade de ser, da liberdade de amar e do direito à cidade... Quanto ao direito à cidade, vou falar do depoimento da Melissa sobre o projeto Trans-formação, da ONU Livres & Iguais, que foi desenvolvido aqui em Brasília e no Entorno, que é de empoderamento das mulheres e dos homens trans.

E ela dizia:

Sabe o que eu quero? Eu quero ter o direito de ir à padaria às 6h da manhã, ou de manhã cedo, sem me sentir hostilizada. Sabe o que eu quero? O direito de entrar em um coletivo sem as pessoas me olharem como se eu fosse uma aberração. Sabe o que eu quero? Apenas isso. Apenas a liberdade de ser, de ir à padaria, de pegar um coletivo, de estudar e de ter nome.

Essa discussão do nome para mim... Trata-se de um significante! O nome é um significante. É o que eu sou. É como eu me coloco. O nome é absolutamente fundamental e estruturante. Você ser chamada pelo que você é, pelo seu próprio nome.

Nós, eu e o Deputado Jean Wyllys, temos um projeto de identidade de gênero em que tratamos da questão do nome. As pessoas têm que ter o direito de mudar o nome. As pessoas têm o direito de mudar o nariz, o olho, o corpo. Mas as pessoas trans não têm o direito de mudar o corpo para que o corpo seja seu, para dizerem: “Este é o meu corpo. Isso é um corpo que me pertence” e tirarem, eliminarem, um sofrimento.

Por isso é importante essa discussão nas escolas, ou seja, se identificar e saber como se é e fazer essa discussão de família. Se nós ainda temos muita resistência familiar, temos belíssimos exemplos.

Eu vou dar o exemplo de um menino que se fez João. Ele não era João, mas se fez João. A família não entendia o que ele sofria - não entendia. Achava que era lésbica, mas não sabia. E ele era João. E o sofrimento que ele tinha no dia da menstruação? Ele atestava que aquele corpo não era o seu próprio corpo!

E há o depoimento do pai, que luta de forma muito ardorosa para ter um registro civil, um nome civil e não apenas um nome social. Eu falo do depoimento do pai, que dizia o seguinte: “Eu não tinha uma filha. Hoje eu tenho um filho”. E a mãe dizia o seguinte: “Fazia tanto tempo que eu não via os dentes dela porque ela não sorria. E hoje eu consigo ver os dentes dela”. E eles fizeram todo o processo solene de apresentar para toda a família que ali estava o João e que o João era João, e não Maria.

Então, penso que, com todos os problemas que nós vivenciamos em uma sociedade tão LGBTfóbica, nós ainda temos bons exemplos e temos que nos pautar por ele. Nós vamos continuar nesse processo para dizer que todo mundo tem o direito de ser. E o direito de ser é revolucionário, como disse a Daniela, é fundamental. Não estamos tratando de opção.

As pessoas não podem ser expulsas, como são, das escolas, das ruas. Falo do direito à cidade porque a cidade pertence a todas e todos, para construir um mundo em que, como disse a Daniela, caiba todo mundo.

Eu vou ficar com o poeta que diz: “Eu quero uma sociedade onde caiba todo mundo, mas que me caiba inteiro, com as minhas diabruras e com as minhas canduras”. É isso que nós queremos. Se a ordem é a ordem binária, é a ordem excludente, é a ordem que não possibilita que a cidade seja de todas e todos, com acesso a todas as políticas e a tudo o que a nossa humanidade exige, eu fico com o outro poeta, que diz que “é melhor que o nosso nome seja tumulto”. Então, sejamos “tumulto” se é esta a ordem que querem nos impor.

Então, com isso, eu agradeço a presença de todos e todas. Reafirmo o convite para o nosso retorno, às 14 horas, no Plenário 14, para que nós possamos dar prosseguimento a esta discussão.

Quero dizer ainda que nós vamos também fazer uma discussão aqui na Casa sobre a despatologização da transexualidade - já aprovamos duas moções na Seguridade Social e na Comissão de Direitos Humanos -, para que nós possamos influir na revisão do Código Internacional de Doenças.

Portanto, com tudo isso, um beijo no coração.

Viva o direito de ser! Viva o direito de amar! Viva o direito à cidade! E viva a nossa própria humanidade, que, se não é diversa, foi-se embora a própria humanidade.

Um beijo para vocês e, mais uma vez, obrigada. (Palmas.)