CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ

Sessão: 1036/10 Hora: 14:43 Fase:
Orador: Data: 17/08/2010


DEPARTAMENTO DE TAQUIGRAFIA, REVISÃO E REDAÇÃO


NÚCLEO DE REDAÇÃO FINAL EM COMISSÕES


TEXTO COM REDAÇÃO FINAL


COMISSÃO DE DIREITOS HUMANOS E MINORIAS EVENTO: Seminário N°: 1036/10 DATA: 17/08/2010 INÍCIO: 14h43min TÉRMINO: 16h56min DURAÇÃO: 2h13min TEMPO DE GRAVAÇÃO: 2h12min PÁGINAS: 41 QUARTOS: 27



DEPOENTE/CONVIDADO - QUALIFICAÇÃO


PEDRO LUIZ MOREIRA LIMA - Representante dos militares homenageados. CEZAR BRITTO - Representante do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil,OAB. CLÁUDIO BESERRA DE VASCONCELOS - Representante da Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ. PAULO ROBERTO MANES - Representante dos anistiados da Aeronáutica. ANTÔNIO MODESTO DA SILVEIRA - Militante pelos direitos humanos. PAULO ABRÃO PIRES JÚNIOR - Presidente da Comissão de Anistia, do Ministério da Justiça.



SUMÁRIO: IV Seminário Latino-Americano de Anistia e Direitos Humanos. Entrega de placa a militares das Forças Armadas. 4ª Mesa. Tema: Política de repressão aos militares na ditadura e o julgamento da ADPF 158: regime jurídico do anistiado político militar. 5ª Mesa. Tema: O descumprimento das Leis nºs 10.559/02; 11.354/06 e 9.784/99 e suas implicações para os Cabos Anistiados da FAB.



OBSERVAÇÕES


Houve intervenções fora do microfone. Inaudíveis.


O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - Declaro abertos os trabalhos desta tarde do IV Seminário Latino-Americano de Anistia e Direitos Humanos.

Como tivemos algum atraso pela manhã e o representante dos homenageados tem hora marcada para chegar ao aeroporto, a fim de voltar para as cidades de origem, iniciaremos pelas homenagens.

Inicialmente, será oferecida uma placa em homenagem a 3 militares, entre eles o Coronel-Aviador Alfeu Monteiro, Comandante da Base Aérea de Canoas, que impediu o bombardeio do Palácio Piratini, em Porto Alegre, quando o então Governador Brizola comandava um movimento pela legalidade. (Palmas.)

O Sr. Pedro Luiz Moreira Lima, filho do Brigadeiro Rui Moreira Lima, receberá a comenda em nome dos demais.

Peço ao advogado Cézar Britto que faça a entrega, agora, dessa placa ao Sr. Pedro Luiz Moreira Lima, que a levará para os familiares do Coronel-Aviador Alfeu Monteiro.

(É feita a entrega da placa.) (Palmas.)

O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - Também o Sr. Pedro Luiz Moreira Lima - os familiares não puderam comparecer - receberá a placa em nome do Capitão Sérgio Ribeiro Miranda de Carvalho, o Sérgio Macaco (palmas), que impediu a explosão do gasômetro do Rio de Janeiro - se a explosão tivesse se concretizado morreriam aproximadamente 100 mil pessoas.

Peço à companheira Marisa, que tão bem coordena este IV Seminário, que faça a entrega.

(É feita a entrega da placa.) (Palmas.)

O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - E agora vamos entregar a placa ao Sr. Pedro Luiz Moreira Lima, filho do Brigadeiro Rui Moreira Lima, herói da 2ª Guerra Mundial e Comandante da Base Aérea de Santa Cruz, no Rio de Janeiro, afastado após o golpe de 64 - o Brigadeiro Moreira Lima sobrevoou as tropas do General Mourão Filho quando este se deslocava de Minas Gerais para o Rio de Janeiro.

Solicito ao companheiro João Vicente Goulart que faça a entrega da comenda ao filho do Brigadeiro Rui Moreira Lima. (Palmas.)

(É feita a entrega da placa.) (Palmas.)

O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - Com a palavra, para agradecer em nome dos 3 homenageados, o Sr. Pedro Luiz Moreira Lima. (Palmas.)

O SR. PEDRO LUIZ MOREIRA LIMA - Boa tarde a todos.

Meu nome é Pedro Luiz. Estou aqui representando meu pai, o Major Brigadeiro Rui Moreira Lima, nesta justa e oportuna homenagem que a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados presta a ele, ao Capitão Brigadeiro Sérgio Ribeiro de Miranda e Carvalho, o Sérgio Macaco, e ao Coronel-Aviador Alfeu Alcântara Monteiro.

A palavra "não" é antipática. Pode ser dita de maneira suave, mas quando dita de maneira forte, resoluta, em defesa de vidas humanas e na preservação das instituições democráticas, é o "não" que toda a Nação deseja ouvir. (Palmas.)

A palavra "não", nesse sentido, foi pronunciada por vários militares. O Major Brigadeiro Rui Moreira Lima, o Capitão Brigadeiro Sérgio Macaco e o Coronel-Aviador Alfeu Alcântara Monteiro representam todos os militares que negaram a quebra da ordem democrática e dos direitos humanos no Brasil.

Foram mortos, como o Coronel Aviador Alfeu, metralhado pelas costas em 4 de abril de 1964, punidos, perderam as respectivas carreiras, estiveram presos e até mesmo foram impedidos de exercer a profissão - os militares da Força Aérea Brasileira foram impedidos e proibidos de atuar profissionalmente na aviação civil.

Foram e continuam sendo punidos. A Lei nº 10.559, a Lei da Anistia, é ainda desrespeitada. Mesmo quando o STF a manda cumprir, os chefes militares e o Ministro da Defesa - os antigos e os atuais - não cumprem e agem como se estivéssemos sob atos institucionais da ditadura militar. (Palmas.)

Muitos devem indagar, surpresos: militares homenageados por uma Comissão de Direitos Humanos? É que confundem o papel do militar na defesa da legalidade, seu verdadeiro papel institucional com o papel dos militares que rasgaram a Constituição de 1946, tomaram o poder, acabaram com o Estado de Direito e implantaram uma ditadura cruel e assassina. E, o que pior, alguns deles se sujeitaram ao papel nojento de torturadores, de sequestradores, de assassinos, culminando com o desaparecimento de suas vítimas indefesas.

Os direitos humanos para os militares são um dogma de vida, tanto em tempo de guerra quanto de paz. Em tempos de guerra, conforme dispõe a Convenção de Genebra, quem não respeita os regulamentos no campo de batalha, numa ocupação militar, passa a ser um criminoso de guerra, o que desonra qualquer soldado.

Em tempos de paz, a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, de 1948, define que as instituições de um país devem cumpri-las e que as Forças Armadas, braço armado e legal do Estado, devem garantir que esses direitos sejam respeitados.

Direitos humanos e militares andam juntos, nunca separados!

Nos tempos de paz, a Marinha, a Aeronáutica e o Exército têm sido brilhantes na defesa de nossos mares, rios, territórios, fronteiras e espaço aéreo, promovendo a integração, levando infraestrutura e saúde à população, combatendo o narcotráfico, enfim, garantindo a soberania nacional.

Um dos nossos maiores vultos militares foi o Marechal João Cândido Mariano Rondon (palmas), Patrono das Comunicações do Exército, que integrou o nosso território, do Pantanal a Amazônia, com o serviço de telegrafia. Foi também notável defensor dos índios e de sua cultura. Certa vez, cercado por índios e ameaçado de morte, mandou seus homens baixarem suas armas e disse: "Morrer se preciso for; matar, nunca".

Rondon criou o Serviço de Proteção ao Índio, órgão por onde passaram homens notáveis como os irmãos Villas Boas, Noel Lutels e Darcy Ribeiro.

Ainda hoje, heroicos sertanistas saem às matas na defesa de nossos irmãos índios. Bem diferente dos norte-americanos, para os quais índio bom é índio morto e que tentam, de maneira cínica e hipocritamente, dar lições de civilidade, além de procurarem nossa Amazônia.

O Clube Militar teve uma atuação digna ao se recusar a fazer o papel de capitão do mato a serviço de latifundiários na captura de escravos fugitivos. Essa atitude acelerou a decisão da Princesa Isabel de assinar a Lei Áurea, acabando com a escravidão no Brasil. Ainda hoje, para nossa vergonha, em grandes fazendas e construções de norte a sul do País, brasileiros ainda sofrem com a escravidão.

O Clube Militar, na maior campanha cívica já realizada no Brasil - a campanha O petróleo é nosso - , se engajou lado a lado com a população até a vitória do monopólio nacional do petróleo, com a criação da PETROBRAS. Traidores da Nação quebraram o monopólio por motivos vis e ainda hoje lutam para entregá-la a mãos estrangeiras. Não conseguirão, pois o povo brasileiro está vivo e tem bem presente os exemplos do General Horta Barbosa, do Brigadeiro Francisco Teixeira, do Brigadeiro Fortunato Câmara de Oliveira, da UNE, enfim, de todos os segmentos da população que lutaram e morreram para que essa grande empresa seja o que é hoje.

Marechal Lott, outro símbolo de militar legalista (palmas), impediu, em 11 de novembro de 1955, que os golpistas de 1964 chegassem ao poder pela violência, garantindo que as eleições ocorressem e dando posse ao Presidente Juscelino Kubitschek e ao seu Vice, João Goulart.

Legalidade, direitos humanos e militares andam juntos, nunca separados!

É isso que a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados está homenageando: os militares, de alta e baixa patente, que sempre caminharam lado a lado com a legalidade e com direitos humanos.

Infelizmente, os crimes cometidos pela ditadura civil-militar ainda são guardados em porões infectos. E, por mais bem guardados que estejam, os gritos dos torturados continuam sendo ouvidos pela Nação, ainda indignada com a morte e o desaparecimento de muitos brasileiros.

Qual o motivo de esconder esses crimes? Sem dúvida, um execrável comportamento de falso vergonhoso de corporativismo. Ou pior, o envolvimento de atuais militares nesses crimes. O resultado desse acobertamento mancha interna e externamente o papel nobre das Forças Armadas e também de nossas instituições.

Encerro, com a leitura de carta do meu avô Bento Moreira Lima, juiz de Direito e depois desembargador, a seu filho Rui Moreira Lima que acabara de ingressar na Escola Militar de Realengo, por coincidência, datada em 31 de março de 1939.

Que essa carta, que outrora inspirou meu pai na defesa da soberania do Brasil numa guerra mundial, na defesa das instituições e, finalmente, na luta pela dignidade humana, sirva de exemplo para os futuros cadetes, amanhã generais, jamais abandonar o caminho da legalidade, principal função do militar:

"Rui:

És cadete, amanhã, depois, mais tarde... general. Agora, deves dobrar teus esforços, estudar muito...

Obediência aos teus superiores, lealdade aos teus companheiros, dignidade no desempenho do que te for confiado, atitudes justas e nunca arbitrárias.

Sê um patriota verdadeiro e não te esqueças de que a força somente deve ser empregada a serviço do Direito. O povo, desarmado, merece o respeito das Forças Armadas. Estas não devem esquecer que é este povo que deve inspirá-las nos momentos graves e decisivos. Nos momentos de loucura coletiva, deves ser prudente, não atentando contra a vida dos teus concidadãos.

O soldado não pode ser covarde nem fanfarrão. A honra é para ele um imperativo e nunca deve ser mal compreendida. O soldado não conspira contra as instituições pelas quais jurou fidelidade. Se o fizer, trai os seus companheiros e pode desgraçar a Nação. O soldado nunca deve ser um delator, senão quando isso importar em salvação da Pátria. Espionar os companheiros, denunciá-los visando interesses próprios, é infâmia, e o soldado deve ser digno.

Aí estão os meus pontos de vista.

Deus te abençoe.

Bento Moreira Lima".

Obrigado a todos. (Palmas.)

O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - Muito obrigado, Sr. Pedro Luiz Moreira Lima.

Dando continuidade ao IV Seminário Latino-Americano de Anistia e Direitos Humanos, passaremos à 4ª mesa, que tem com o tema Política de repressão aos militares na ditadura e o julgamento da ADPF 158: o regime jurídico do anistiado político militar.

Convido para compor a Mesa os expositores Dr. Cezar Britto, representante do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (palmas); o Dr. Rafael Favetti, Secretário-Executivo do Ministério da Justiça - ainda não chegou; e o Dr. Claudio Beserra de Vasconcelos, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. (Palmas.)

Concedo a palavra ao Dr. Cezar Britto, representante do Conselho Federal da OAB, por até 15 minutos.

O SR. CEZAR BRITTO - Sr. Deputado Luiz Couto, que muito bem representa a compreensão cidadã de que o Estado deve obedecer, em sua política, à pessoa humana e não ao fortalecimento dele próprio em si mesmo; meus colegas de Mesa; colegas do plenário; senhoras e senhores, falo aqui em nome da Ordem dos Advogados do Brasil. Represento aqui o que a Ordem dos Advogados do Brasil tem feito em defesa da Constituição e do Estado Democrático de Direito, que tem relação direta com esse tema.

Somos apaixonados pela Constituição da República, corretamente batizada por Ulysses Guimarães como Constituição Cidadã. Ela teve clara intenção de romper uma lógica autoritária que nos impuseram no Brasil por vários anos, uma lógica que fez retirar do poder um Presidente constitucionalmente eleito, rasgando a Constituição da época; uma lógica que fazia com que esta Casa funcionasse sob ameaça e fosse fechada pelas forças do tanque; uma lógica em que o Poder Judiciário tinha intervenção direta, inclusive com o afastamento de 13 Ministros, porque ousaram discordar em decisões judiciais dos princípios autoritários de uma ditadura; uma lógica que fazia a imprensa ser censurada; uma lógica que se valia da tortura.

A Constituição de 1988 foi muito bem definida, em uma outra frase não muito conhecida, acho até que propositadamente desconhecida, de Ulysses Guimarães, no dia em que a promulgou. Ele não só a chamou de Constituição Cidadã. Ele disse: Esta é uma Constituição Coragem, uma Constituição dedicada a Rubens Paiva e não aos facínoras que o mataram. Esta frase é de Ulysses Guimarães, no dia em que a Constituição foi promulgada. E disse mais: Esta é uma Constituição que quer acabar com o Estado usurpador. Mais uma frase fantástica daquele que refletia o ponto de vista da Constituição de 1988.

Eu disse que ela é uma Constituição que devemos respeitar e por ela nos apaixonar porque ela nos proporcionou o maior período de estabilidade política da nossa história: 21 anos com democracia, com eleições, inclusive com afastamento de Presidente, sem nenhuma crise institucional.

Mas ainda devemos fazer valer essas palavras de Ulysses Guimarães. A coragem nos falta. O recado fora dado pelo Constituinte, mas talvez não se compreendeu uma outra expressão de um grande resistente brasileiro, que foi Dom Hélder Câmara (palmas), que disse que as leis têm que sair do papel para ganhar as ruas. E a Constituição, nesse tema da anistia, ou da justiça de transição, ainda continua no papel, uma mera vontade de passar o Brasil a limpo.

Eu pus agora uma frase no meu Twitter que busca resumir o que é o não cumprimento da Constituição nesse tema tão delicado. Ficou mais ou menos assim: Eis a contradição de uma democracia fundada na amnésia e no medo. Enquanto o STF anistia os torturadores, o TCU criminaliza os torturados. (Palmas.)

Essa é a lógica que ainda impera no Brasil: a amnésia que não permite abrir os arquivos da ditadura; a amnésia que nós acompanhamos agora, quando se tentou contar a verdade e houve uma reação nacional, com ameaça de entrega de cargos; a amnésia que nos condena a repetir erros por não conhecer o que aconteceu no Brasil. Some-se a isso a lógica do medo de enfrentar os problemas como têm sido enfrentados em vários países do mundo.

Um país como o nosso, que quer ser grande, que se projeta grande economicamente, que procura resolver suas questões sociais, que é referência hoje no mundo, não pode passar a imagem da covardia. Tem que ousar contar a sua própria verdade e separar o joio do trigo. (Palmas.)

Há 2 meses estive no Paraguai. Conversei lá com o Ministro da Defesa, que é um general do Exército. A Comissão da Verdade funciona na sua sala. Ao lado, estudantes de Direito o tempo todo têm acesso aos arquivos da ditadura. Perguntei-lhe se isso não seria uma contradição. Ele disse: "Não. Eu preciso contar a verdade para salvar as Forças Armadas".

As Forças Armadas, como foi bem dito aqui em um discurso, não é composta por torturadores. Ali, foi minoria. (Palmas.) E é preciso separar o joio do trigo. Por isso que a nossa gestão na Ordem, que quer contar a história, ingressou no Supremo Tribunal Federal com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade para que se abrissem os arquivos da ditadura. Depois, ingressou com uma ADPF para punir os torturadores.

Fomos vencidos na decisão, mas não na luta. Entramos, sexta-feira, com os embargos de declaração, tentando rediscutir ainda a matéria. (Palmas.)

Mas havia uma outra ação, a ADPF nº 158. Quando falo dela, confesso que eu, como parte da população brasileira, também estava sendo vítima da amnésia, do esquecimento e do medo que nos impuseram. Nós não sabíamos que os militares que resistiram continuam sendo perseguidos. Somente em uma reunião comandada pelo Brigadeiro Moreira Lima foi que nós tomamos conhecimento disso. E tenho perguntado a todas as pessoas com quem converso se elas sabem que os militares que resistiram continuam recebendo tratamento discriminatório das Forças Armadas. Ninguém sabe. (Palmas.)

O caso do brigadeiro é sintomático. Ele já é herói de guerra, já é beneficiário de uma das leis que mais ampliaram limites de defesa, a do ex-combatente. Ele foi anistiado, mas não para ser beneficiado. Por haver sido anistiado, ele passou a ser punido. A anistia que a Constituição quis garantir como direito, para ele serviu de punição mais uma vez. Ele não tem sequer o direito de morrer, porque sua família não terá pensão. Isso não é anistia. Isso é punição dobrada, é humilhação.

Esse simples exemplo do brigadeiro nos convenceu de que é preciso também, neste canto, restabelecer a história.

A ADPF que ajuizamos tem 2 funções muito claras, não só demonstrar que quem resistiu foi anistiado na plenitude da sua palavra. Quando nós conversamos sobre isso, sobre a anistia, ele disse: "Mas eu não quero que meu pai venha a ser anistiado, porque ele não fez nada de errado. Como ele vai ser anistiado se ele não fez nada de errado?" Foi um dos debates que tivemos lá na OAB.

E o novo conceito de anistia, o mais moderno conceito de anistia e que está na Constituição, não é o de que o Estado perdoa quem errou; é o de que o Estado reconhece que errou e pede perdão pelo erro, o que chegou para João Goulart (palmas), mas não chegou ainda para os militares. Faz-se uma pergunta: se está previsto o conceito de anistia como o perdão do Estado pelo afastamento das pessoas, perdão do Estado por ter feito uma opção não democrática, significa que nós vamos ganhar esse direito no Supremo Tribunal Federal? Não! Às vezes, é mais fácil mudar uma lei do que mudar a cabeça do homem, e parte da nossa estrutura ainda está fundada na amnésia e no medo, repito. Às vezes, no Brasil, portaria de delegado vale mais do que Constituição. Às vezes, lei vale mais do que Constituição. E ninguém procurou compreender ainda aquela vontade do Constituinte de fazer uma opção pela democracia. Por isso, nós ainda temos dificuldade de fazer valer o texto constitucional, o querer expresso da Constituição, repito, que Ulysses chamou, naquele período, de Estado usurpador.

Por isso, seminários como este, Deputado Luiz Couto, são extremamente importantes. Eles demonstram que a Casa do povo, a Câmara dos Deputados, tem de sempre estar ouvindo o povo. Essa é a essência da democracia. Em seu art. 1º, logo no seu início, a Lei Maior diz que todo poder emana do povo, que o exerce diretamente ou por meio dos seus representantes. E esta é a Casa em que o povo tem de estar representado. Esta Casa não pode deixar de ouvir a súplica daquele que, num dia, acreditou na democracia e resistiu a uma ditadura militar. Esta Casa não pode deixar de dar uma resposta positiva e se somar à luta daqueles que querem um tratamento igualitário.

Eu li há pouco o parecer do Ministério Público Federal na ADPF, contrário ao nosso pedido. O órgão de acusação, como um órgão de acusação no Brasil, diz que aplicar a Lei de Anistia aos militares que resistiram é aplicar de forma desigual o Direito. Diz que vocês, ao serem anistiados especiais, não têm direito à igualdade de tratamento com os demais militares que hoje estão na reserva.

Isso é que é igualdade ou ele está impondo uma desigualdade não prevista na própria Constituição da República? Ainda que a lei dissesse que há um regime especial de anistiado diferenciado do regime dos demais militares, ela seria claramente inconstitucional, porque a Constituição, não só ela, mas a emenda que a convocou, já disse que anistia é restabelecer o status anterior, é readquirir a patente. A patente para o militar é como o ar que ele respira, é a própria roupa que ele carrega quando dorme; e não recuperar a patente é a punição em si mesma por todo o tempo. A Constituição quis restabelecer a história interrompida por uma ditadura. Uma lei não poderia dizer isso. Uma lei não poderia dizer que o militar da ativa tem direito a passar a pensão a seus filhos, o auxílio-creche, e os outros, não.

O tratamento desigual está aqui nesse pensamento externado pelo Ministério Público e não pela vida. Por isso, repito, temos de continuar nos mobilizando, temos de continuar demonstrando e ousando contar a verdade.

Eu li certa vez - já vou caminhar para o encerramento, porque o meu tempo está se encerrando - uma frase e gostaria de citá-la. Peço desculpas ao autor, porque não me lembro o nome dele agora. Diz a frase que o futuro da tortura tem relação direta com o futuro do torturador. O futuro do autoritarismo tem relação direta com a forma como nós tratamos os autoritários. Se nós perdoamos aqueles que cometem crime de lesa-humanidade, de lesa-democracia, esses    que cometem os crimes ficarão    estimulados a praticá-los porque sabem que, no futuro,    serão perdoados legalmente ou pela história ou pelo esquecimento.

Esse tema foi amplamente debatido após Segunda Guerra Mundial pelos alemães, quando, derrotada a Alemanha, descobriram as atrocidades do nazismo. Os alemães debateram sobre isso. Ficaram na dúvida sobre o que fazer: esquecer o passado, a dor do passado, o holocausto, demonstrar ao mundo e abrir-se para o mundo para mostrar os crimes que eles próprios cometeram? Qual o destino    que deveriam dar ao pós-guerra?

Os alemães não tiveram dúvida, puniram os criminosos, abriram os seus arquivos para que todos os conhecessem, transformaram em crime negar o próprio holocausto, negar a perseguição, para que nunca se repitam. Conhecer para que nunca se repitam. Punir quem comete graves crimes, para que nunca se repitam. Essa é a lógica que nos move. Não é revanchismo, é sobrevivência democrática.

O direito de uma geração não exclui o direito de outra geração. Nós temos o direito de fazer... A geração que sofreu, que sabe o que é uma ditadura    não tem o direito de excluir da outra geração o direito de saber o que é, para que ela não cometa o mesmo erro.

Muito obrigado a todos. (Palmas.)

O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - Concedo a palavra ao Sr. Claudio Beserra de Vasconcelos, da UFRJ, que dispõe de até 15 minutos.

O SR. CLAUDIO BESERRA DE VASCONCELOS - Boa tarde a todos.

Eu quero, em primeiro lugar, agradecer o convite à Comissão de Direitos Humanos e Minorias e aos militares e filhos de militares que estão aqui presentes, porque muito do meu trabalho, da tese que defendi há pouco tempo na UFRJ de fato se deve à ajuda que eles me deram,    fornecendo documentos    e mostrando os caminhos por onde eu poderia seguir para analisar o processo de repressão a militares durante a ditadura.

No caso específico da ADPF, com o que eu posso contribuir mais em relação ao meu trabalho é fazer uma discussão sobre a memória pública construída em torno da ditadura instaurada em 1964. Num contexto de criação da Comissão Nacional da Verdade,    vemos que ela tem como um dos seus objetivos efetivar o direito à memória e à verdade histórica. E, quando analisamos a memória construída em torno do golpe, em torno da ditadura instaurada em 1964, um dos elementos que sobressaem, na verdade, é o esquecimento.

Eu não vou me ater às diversas características do    esquecimento da memória, até mesmo porque a palestra do Prof. Juan Rene, na Mesa anterior, foi basicamente sobre este tema e ele tem muito mais propriedade para falar    sobre esse assunto do que eu. Mas, grosso modo, pode-se classificar a memória de 3 formas diferentes: uma memória passiva, fruto da nossa    própria incapacidade de lembrar de tudo o que acontece em nossa vida; uma memória traumática, em que muitas pessoas preferem esquecer a reviver momentos dolorosos de sua vida; e uma memória que é fruto de um projeto político, de um esquecimento fruto de um projeto político. E é a esse esquecimento mais específico que eu quero me ater.

Quando pensamos em ditadura, as próprias denominações mais comuns são ditadura militar e regime militar. Acho que essas denominações são    equivocadas e têm um problema duplo, logo de saída. Primeiro, elas fazem ignorar a    participação de civis    tanto na conspiração antes do golpe, na conspiração que levou    à deposição do Presidente João Goulart... Se o golpe, efetivamente, é uma ação militar, a conspiração não foi. E o regime não foi um regime puramente militar.

Existiu uma participação civil efetiva durante todo o regime, durante toda a ditadura. E essa participação não pode ser esquecida. Essa memória pública construída em torno do regime, em torno da ditadura, fez ignorar, fez esquecer e fez colocar sob o tapete essa participação de civis. Isso contribuiu muito para que muitos desses civis partícipes do regime continuassem no círculos do poder. Até hoje em dia vemos senhores civis da ditadura participando de nosso Governo. Isso faz também com que nos esqueçamos de um outro grupo de civis que, se não participaram efetivamente da parte política, apoiaram e muitas vezes até patrocinaram ações da ditadura, ações violentas e de tortura. Esse é um passado que não podemos esquecer.

Mas, para o caso específico, essa denominação ditadura militar faz a sociedade pôr sob o tapete a participação de militares contra a ditadura, contra o golpe e contra o regime. Essa não foi uma participação pontual. Se levarmos em consideração apenas os 3 primeiros atos de cassações, nos primeiros dias após o golpe, de 11 a 13 de abril de 1964, contamos que, dos 222 cassados nesses 3 primeiros atos, 128 eram militares. Quase 60% dos cassados nos 3 primeiros atos de cassação eram militares e não civis.

O levantamento que fiz não deu para esgotar. Levar esses números com precisão é muito complicado. Mas o levantamento até 1970, levando-se em consideração apenas os militares que tiveram as cassações publicadas em diários oficiais - isso não me faz ignorar, mas não contar os casos de marinheiros e cabos -, vemos que são quase 1.500 os militares cassados. Não podemos esquecer essa violência.

Percentualmente, a cassação de funcionários públicos militares é superior à    de funcionários públicos civis. É óbvio que o número de funcionários públicos civis é muito maior do que o de militares. É só para vermos como foi violenta a punição, a cassação e a política repressiva sobre militares a partir de 1964.

Fazendo um levantamento com mais atenção, porque os dados a que tive acesso só me permitiam dar mais atenção aos oficiais generais e aos oficiais superiores, percebemos que esses militares tiveram uma participação efetiva no movimento nacionalista, que foi forte no Brasil principalmente a partir do final da Segunda Guerra Mundial.

Desde então tivemos a Campanha para o Petróleo; a Criação do Centro de Estudos e Defesa do Petróleo e da Economia Nacional, criado em 1948; tivemos as campanhas; a Chapa Nacionalista, que disputou as eleições no Clube Militar de 1950 a 1952; a Associação Brasileira de Defesa dos Direitos do Homem, criada principalmente para defender os militares processados a partir de 1952 por comunismo; tivemos a Liga de Emancipação Nacional, criada em 1954 para tentar coordenar todas essas ações nacionalistas, porque elas eram um pouco independentes, a Liga da Emancipação Nacional tentou dar uma coordenação; a Campanha contra o Acordo Militar Brasil-Estados Unidos. Enfim, foi criada uma série de associações culturais de auxílio a povos latino-americanos, como a Associação de Auxílio ao Povo da Guatemala, criada em 1954; a de apoio à China, criada em 1959; à Cuba, em 1961, e ao Paraguai, em 1963.

Se fizermos um levantamento das direções dessas associações, desse movimento, perceberemos que quase sempre os líderes eram militares. E era o mesmo grupo de militares: Edgar Buxbaum, Felicíssimo Cardoso, que é tio do ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso, Salvador Correia de Sá e Benevides. Basicamente cerca de 15 militares participaram da diretoria de todas essas associações. Muitos deles não foram efetivamente cassados. Alguns já haviam falecido em 1964, outros não tinham mais uma posição, já estavam na reserva.

Novamente, se fizermos um levantamento, perceberemos que a maioria dos militares cassados eram da ativa. Apenas 7% ou 9%, dependendo da patente, eram da reserva. O foco então eram militares da ativa. Apesar de os diretores dessas associações não terem sido cassados, muitos dos oficiais, generais e superiores cassados delas participavam, nem sempre em cargos-chave.

Apesar das singularidades entre essas associações, elas tinham um projeto comum, um projeto de emancipação nacional, um projeto de crítica ao imperialismo, um projeto de defesa da autodeterminação e de soberania dos povos, de defesa das riquezas nacionais. Essas associações, por meio de mobilizações, de encontros, de cursos, procuraram ser porta-vozes e formar uma consciência em torno da defesa de um projeto de desenvolvimento econômico nacionalista para o Brasil.

Esse projeto era antagônico ao projeto de desenvolvimento capitalista liberal e, como tal, após o golpe de 1964, os defensores dessas propostas nacionalistas foram perseguidos. Como os militares, na verdade, eram os líderes da maioria dessas associações, desses movimentos, eles sofreram forte repressão.

Ocorre que, ao estabelecermos a relação de que o regime era militar e de que a ditadura era militar, pomos sob o tapete a participação dos militares na luta por um projeto nacionalista para o Brasil, que foi ampliado a partir do fim da Segunda Guerra Mundial. No contexto da Comissão Nacional da Verdade, que quer restituir a memória e a verdade histórica, percebemos que essa memória pública sufocou a memória desses militares e esse conflito político-ideológico foi intensificado a partir de 1945.

Então, acaba que evitamos questionar as responsabilidades civis - muitas vezes em casos de violência, não só no governo, mas também durante a ditadura militar -, mas ignoramos a cassação de militares após 1964.

Muitas vezes, até em roda de amigos, durante o doutorado, eu era questionado sobre a minha temática. Eu falava que eu pesquisava a política repressiva aplicada aos militares e a questão vinha logo à tona. Diziam: "Mas como? Houve militares cassados?". Eu respondia: "Houve muitos militares cassados, e isso não pode ser esquecido".

Então, nesse contexto do direito à memória e à verdade, acho que lembrar é mais do que um direito que esses homens têm. Lembrar é um dever social; lembrar é um dever que nós, não só os militares, devemos ter, trazendo à tona essa participação militar, a luta desses militares por um Brasil que na verdade não se concretizou, uma vez que a proposta vencedora era antagônica à proposta nacionalista.

Como quem pesquisa a ditadura militar tem sempre o problema com os arquivos, que nem sempre estão abertos - isso tem mudado um pouco, mas a abertura ainda é lenta e gradual, e, pelo jeito, vai continuar assim por longo período -, uma das opções que temos é entrevistar esses militares, é tentar construir a biografia coletiva desses militares. Nós, como historiadores, não vamos querer vitimar esses homens. Queremos resgatar a memória.

Temos de utilizar instrumentos metodológicos para analisar essa memória, mas precisamos - é nosso dever - dar voz a esses homens, dar voz a essas memórias que foram silenciadas e sufocadas pela memória pública que se criou em torno da ditadura, em torno do regime instaurado em 1964. Resgatar essas vozes é contribuir para o direito desses senhores à memória e à verdade histórica.

Obrigado. (Palmas.)

O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - Muito obrigado, Sr. Cláudio Beserra de Vasconcelos.

Temos 15 minutos para o debate. Quem quiser participar... Já tem um aqui.

"Militares que recentemente foram punidos pelo Ministro da Defesa Civil ou apenas dá aval ao Estado Maior ou a associações militares". É uma pergunta, não é?

(Intervenção fora do microfone. Inaudível.)

O SR. CEZAR BRITTO - Não sei se entendi.

As punições ainda são feitas pelos seus superiores hierárquicos, segundo o Código Penal Militar. Cada um tem seu poder de punição. O Ministro não teria participação... Há toda uma hierarquia.

A hierarquia e a disciplina são instrumentos fundamentais às Forças Armadas e têm que ser defendidas. Não se pode encarar a legislação das Forças Armadas da mesma forma que a do civil. O dormir em serviço de um vigia é diferente do dormir em serviço de um militar. Por isso, as hierarquias e os direitos são diferenciados - corretamente diferenciados -, mas as punições também observam as hierarquias. Se o sargento desobedece ao tenente, o tenente tem o poder de dar uma punição, e assim sucessivamente.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - Alguém mais?

(Intervenção fora do microfone. Inaudível.)

Dr. Cezar Britto, mais uma para o senhor.

O SR. CEZAR BRITTO - Como eu vejo as ingerências do TCU no âmbito da questão da anistia? Já fiz aquela manifestação em que acho que punir os torturadores e criminalizar o torturado é fruto do medo e da amnésia que estamos a enfrentar.

É muito estranha a decisão tomada pelo Tribunal de Contas de interferir nessa matéria da anistia em pleno período eleitoral. Primeiro, tenho dúvida quanto a uma discussão que se arrasta há vários anos, em que se pinçam anistias simbólicas em pleno debate eleitoral, pelo calor e paixão com que essa matéria é ainda inserida em nosso debate.

A OAB já se manifestou e analisou que os 3 casos apontados não foram frutos de decisões da Comissão da Anistia, mas de decisões judiciais. Tenho a impressão de que há uma politização muito clara nessa matéria.

A Comissão da Anistia já respondeu que está cumprindo a Constituição da República - e não tenho dúvida quanto a isso -, mas hoje estamos invertendo aqueles valores. Como foi muito bem colocado, ao provocar o esquecimento sobre as ações militares e as ações resistentes, começa-se a provocar dúvidas nas pessoas.

Você viu que um jornal chamou a ditadura de "ditabranda" recentemente. Começou a haver uma competição: "Mas aqui se matou menos do que lá", como se um crime fosse menor do que outro pela quantidade, e não pela forma do crime, e como se um atentado à democracia de um país, sendo mais dura do que a de outro, absolvesse aquele que concedeu um golpe militar.

Tudo isso é fruto dessa questão do esquecimento. Não tenho dúvida nenhuma de que o Tribunal de Contas está politizando essa matéria, que não é de competência dele. (Palmas.)

Acho que as palmas já responderam por mim.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - O próximo. (Pausa.)

O SR. CEZAR BRITTO - Alguém me faz uma pergunta extremamente polêmica, que divide a própria OAB: se a permanência do STM, Superior Tribunal Militar, não é um resquício de que ainda vivemos sob o regime militar. Isso divide a OAB.

O STM, e quero fazer justiça ao Superior Tribunal Militar, primeiro, não nasceu com a ditadura. Ele é um dos primeiros tribunais criados no Brasil, ainda na época de D. João VI. Então sua implantação não tem relação direta com a ditadura militar. Foi o primeiro tribunal do Brasil, ainda com D. João, repito.

(Intervenção fora do microfone. Inaudível.)

O SR. CEZAR BRITTO - É isso o que eu vou esclarecer agora. A razão de ser do Tribunal Militar está naquela primeira resposta que eu dei bem rapidamente: a legislação militar, a disciplina para o militar é bem diferente da disciplina para o civil. O não cumprir ordem para o militar pode significar um grave prejuízo à soberania, um grave prejuízo à Nação. Por isso a quebra de hierarquia militar é um pouco diferente da desobediência à ordem de um chefe. O raciocínio é diferente, por isso foi criada uma corte militar, como existe em todos os lugares do mundo. Acho que a posição majoritária da Ordem, que já fora contrária aos tribunais militares, hoje é mais favorável a eles. E a justiça tem de ser feita: os tribunais militares resistiram muito mais do que os próprios tribunais civis durante a ditadura militar. Uma das formas que os advogados tinham de evitar a tortura, ou o desaparecimento forçado, era comunicar ao STM a prisão, porque, a partir do momento em que o Superior Tribunal Militar tinha a confirmação de que alguém havia sido sequestrado, cessava a tortura. Ainda não tinham revogado o habeas corpus para os crimes políticos, mas a comunicação do fato ao STM já era uma forma de prevenir a punição, e se conseguia por meio disso até mesmo localizar várias pessoas. Os militares dos tribunais tomaram mesmo decisões ousadas e corajosas. Embora também houvesse decisões que ratificavam a ditadura militar, eles conseguiram, corajosamente, por exemplo, arquivar várias IPMs, várias decisões.

Ainda há uma dúvida muito grande se devemos extinguir o tribunal militar. Acho que, sim, devemos separar o que é crime comum cometido por militar de crime cometido por militares e policiais militares. Essa separação tem de ser feita. Antigamente, confundia-se muito isso. O militar cometia um crime comum, mas era julgado pela Justiça Militar. A separação há de ser feita: o que é questão militar para matéria militar e reciprocamente. Mas ainda confesso que por hoje ainda defendo a estrutura da Justiça Militar. (Palmas.)

O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - Nós temos ainda 4 questionamentos, o que já ultrapassará o tempo, porque a outra Mesa deve iniciar seus trabalhos daqui a instantes.

Algumas questões são dirigidas ao Dr. Cezar Britto.

O SR. CEZAR BRITTO - Parece-me que há uma pergunta, se eu entendi bem, sobre o que eu acho de a Comissão de Anistia aplicar os cálculos da indenização do pagamento continuado com base nos dados do Datafolha, se isso é correto ou não.

A matéria é polêmica. Se é correto ou não, isso eu não sei. Tem de haver um parâmetro. Temos de discutir um parâmetro de valores.

O Brasil mudou, tem mudado muito. Só de redemocratização nós já temos 21 anos, e há casos de pessoas que foram perseguidas já no início de 1964. Os cargos mudaram de nome, as atividades mudaram, o padrão de correção monetária é muito difícil. É preciso escolher um parâmetro. O parâmetro adotado foi exatamente a média salarial que hoje o Datafolha tem publicado. Às vezes procura-se o parâmetro dos cargos no Governo sobre a matéria. No caso dos militares, é muito fácil, porque não mudou a nomenclatura, a nomenclatura é exatamente a mesma: quem é cabo é cabo, quem é sargento é sargento, quem é tenente é tenente, há um parâmetro muito próximo. Mas, quando há modificação da nomenclatura, é preciso atribuir alguma. E, em havendo discordância, cabe ainda numa decisão embargos de declaração, revisão de valores, para adequação do parâmetro que foi arbitrado.

(Intervenções fora do microfone. Inaudíveis.)

O SR. CEZAR BRITTO - Essa escolha do Datafolha e o cargo em que a pessoa vai ser reintegrada, essa é a complexidade que existe, dada a modificação das nomenclaturas. Mas um parâmetro que nós podemos utilizar, uma forma em que a Justiça do Trabalho se comporta muito bem, é esta: é muito mais importante a realidade do que o nome dos cargos. O contrato de trabalho é um contrato de realidade, não é um contrato de nomenclatura. Se conseguirmos mostrar que o cargo que se assemelha mais àquela atividade exercida é outro, cabe a revisão do pedido de anistia, ou de reintegração.

(Intervenção fora do microfone. Inaudível.)

O SR. CEZAR BRITTO - O.k.

Outra pergunta: "O que acha a OAB sobre a criação de um tribunal popular para julgar crimes cometidos pela ditadura? O STF impede que criminosos que cometeram crime de tortura..."

Como proceder efetivamente para contestar arbitrariedades impostas aos anistiados militares por meio da interposição de um novo regime do anistiado militar?

Eu não tenho dúvida nenhuma de que o regime do anistiado militar é inconstitucional. Não tenho dúvida nenhuma disso. (Palmas.) Se o Supremo vai dizer o contrário, é outro problema. A Constituição não diferenciou. Se a Constituição não diferenciou, não cabe ao Constituinte derivado diferenciar. Se a lei quis, porque ainda tem receio de enfrentar a questão, se ela quis dizer que o regime discriminatório para os militares permanece, disse ao arrepio da expressa vontade constitucional. (Palmas.)

Esta é uma pergunta para o Deputado Luiz Couto, se o Congresso Nacional pode estabelecer uma nova lei de anistia esclarecendo a igualdade. Pode, e seria muito bom. Há um ditado que nós usamos para brincar no Direito: quod abundat non vitiat, ou seja, o que abunda não vicia. Se houver uma lei mais garantidora, melhor ainda.

Mas uma Justiça especial para punir arbitrariedade eu não acredito que vá existir. Se a simples propositura da Comissão Nacional de Defesa da Pessoa Humana de criar uma comissão da verdade já provocou toda essa discussão, todo esse recuo do Governo na matéria, imaginem a criação de um tribunal popular destinado a julgar essas matérias? Não acredito nessa hipótese no Brasil.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - Mais 2 perguntas, depois o Manes.

(Intervenção fora do microfone. inaudível.)

O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - Você tem de ir ao    microfone, porque estamos gravando. Aqui a palavra tem que ser gravada.

O SR. CEZAR BRITTO - A pergunta é se eu tenho conhecimento da ADPF nº 181...

O SR. PAULO ROBERTO MANES - Se o nobre Presidente da minha instituição e a do meu ilustre doutor nos permitir, eu gostaria que o doutor, muito melhor do que eu, "oitentão" e decano dos presos políticos no Brasil, esclarecesse sobre o papel do STM no que se refere aos condenados políticos. Por gentileza, doutor.

O SR. CEZAR BRITTO - Claro. Estou repetindo, antes que o senhor responda, o posicionamento dos advogados criminalistas, como Tércio Lins e Silva, essa turma toda que publica nos seus livros essa a atuação do STM.

O SR. ANTÔNIO MODESTO DA SILVEIRA - Ilustre colega Britto, eu cheguei um pouco atrasado - estava almoçando - e ouvi muito pouco, mas suponho que esta matéria já tenha sido discutida em outra Mesa. Uma pergunta que ouvi que me parece não ter sido muito bem formulada pode ter gerado uma resposta também incompleta.

O que ouvi do Dr. Britto foi muito correto. Sobre o que era opinativo ele opinou. Eu poderia tentar esclarecer acerca de uma parte da opinião dele sobre o Tribunal, dizendo o seguinte: o Tribunal Militar foi o primeiro a ser criado no Brasil, em 1808, por Dom João - não havia outros, quando se criou o Tribunal Militar. É natural que as ditaduras e as monarquias, que são verdadeiras ditaduras vitalícias e hereditárias, queiram se escudar mais nos tribunais militares, porque são muito autoritários. No caso brasileiro, em 1964... Tenho que ser mais rápido?

O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - Sim, porque nós já temos composta a Mesa seguinte.

O SR. ANTÔNIO MODESTO DA SILVEIRA - A partir de 1964, tiraram o poder dos civis e o jogaram na mão dos militares, porque não confiavam nos juízes civis. Na verdade, o Tribunal Militar era formado pelos generais, alguns dos quais eu encarei, como Mourão Filho, o próprio Geisel e o irmão dele e Adalberto Pereira dos Santos. Todos eles eram da ditadura, apoiaram a ditadura e passaram pelo Tribunal por um trampolim ou por serem vacas fardadas, correto? Então, aquele tribunal, dentro da expectativa da ditadura, foi muito menos ruim, foi menos ruim. Vejo isso aí.

Quanto à existência ou não do Tribunal Militar, se conseguíssemos fazer com que os tribunais civis julgassem os militares, seria muito melhor. Ainda que fossem tribunais mistos, os tribunais civis julgariam os militares e todos os civis. Parece-me que esse seria o melhor caminho.

Muito obrigado. (Palmas.)

. O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - O Deputado Arnaldo Faria de Sá já está presente, bem como os demais expositores. Portanto, podemos dar início à 5º Mesa deste seminário.

O SR. CEZAR BRITTO - A pergunta se resume a se eu acho que a ditadura ainda está à nossa espreita, nos olhando, nos observando.

Eu citarei uma outra frase que também não é minha: o preço da vigilância é o que nos garante a democracia. Temos de estar sempre vigilantes quando há arroubos autoritários ou quando temos medo de enfrentar os nossos problemas.

Vocês que têm formação militar sabem que, quando nós nos acovardamos, os inimigos crescem; quando nós temos medo de enfrentar, as forças reagem. (Palmas.) Portanto, o preço da democracia é a eterna vigilância.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - Nós agradecemos ao Dr. Cezar Britto e ao Sr. Cláudio Beserra de Vasconcelos a participação.

Concluímos a 4ª Mesa de trabalho deste seminário. Os expositores estão liberados.

Convido a assumir a direção dos trabalhos o próximo coordenador deste evento, que é o Deputado Arnaldo Faria de Sá. (Palmas.)

Esta é a 5ª Mesa do nosso Seminário, e tem como tema "O descumprimento das Leis nºs 10.559/2002, 11.354/2006 e 9.784/1999 e suas implicações para os cabos anistiados da FAB".

Com a palavra o Deputado Arnaldo Faria de Sá.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Arnaldo Faria de Sá) - Boa tarde a todos os anistiados, a todos os anistiandos. Estamos aqui para tentar fazer alguma coisa, apesar de que está difícil. Há tanta complicação, e ainda fomos vítimas, na semana passada, de uma decisão do tribunal de exceção, que acabou questionando todas as anistias que foram concedidas. Eu não o chamo de Tribunal de Contas da União, porque isso é tribunal de exceção. (Palmas.) Lamentavelmente, não tem esse tribunal o poder de tomar tal decisão - uma decisão, na minha opinião, de um tribunal incompetente. O Tribunal de Contas da União é um órgão auxiliar desta Casa, e uma lei emanada desta Casa não pode ter o tratamento que tem por parte do Tribunal de Contas da União, que, aliás, no ano passado, já tinha se julgado incompetente para julgar essa matéria. Mais incompetente ainda quando toma uma decisão dessa ordem, criando apenas confusão em vez de buscar solução. Eles poderiam até, eventualmente, num e noutro caso, tentar fazer o questionamento; mas não poderiam tentar fazer o questionamento de tudo.

Eu quero compor a Mesa e vou chamar para dela fazer parte uma pessoa que tem tido uma ação bastante importante nesse trabalho. Num primeiro momento, algumas entidades até começaram a questionar, mas hoje temos visto que essa é uma pessoa que tem dado um apoio muito grande à questão dos anistiados. É o Sr. Paulo Abrão Pires Júnior, Presidente da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça (Palmas.).

Quero convidar também para fazer parte da Mesa o Dr. Paulo Roberto Manes, Interlocutor dos Anistiados da Aeronáutica (Palmas.).

Eu sei que os próximos que chamarei não estão presentes, mas vou fazer o convite oficialmente para que eles recebam de todos vocês a devida recepção.

Quero convidar para fazer parte da Mesa o Sr. Benjamim Zymler, Vice-Presidente do Tribunal de Contas da União. (Apupos.)

Quero também convidar a tomar assento à Mesa aquele tem sido uma das autoridades que mais tem atrapalhado a anistia, principalmente daqueles que fazem parte das 3 Armas (Marinha, Exército e Aeronáutica), o Ministro da Defesa, Nelson Jobim. (Apupos.)

Embora também não esteja presente, convido para fazer parte da Mesa o Sr. André Luís de Carvalho, Ministro Substituto do Tribunal de Contas da União. (Apupos.)

Não está presente, mas vou convidar para que faça parte da Mesa, o Sr. Vilson Marcelo Verdana Malshow, Consultor Jurídico da CONJUR, do Ministério da Defesa. (Apupos.)

Embora não esteja presente, convido para fazer parte da Mesa a Sra. Giselle Cibila, Consultora Jurídica da CONJUR, do Ministério da Justiça. (Apupos.)

Vocês viram que realmente é uma coisa extremamente preocupante. O TCU toma a decisão de uma interferência indevida, numa incompetência clara, e, quando tem de vir debater com vocês se nega, some, desaparece, se esconde! É por isso que eu chamo a atitude do Tribunal de Contas da União de atitude de tribunal de exceção: pela sua incompetência e pela sua tomada de posição absurda e abusiva! (Muito bem!)

Certamente, tem alguém do TCU aqui ouvindo a nossa manifestação. Então, eu queria deixar em aberto: se chegar alguém do TCU e quiser vir aqui debater com a gente, democraticamente nós vamos debater. Até porque o Tribunal de Contas da União está preocupado com as indenizações aprovadas em lei nesta Casa, decididas na Constituinte de 1988, quando já anteriormente votada uma lei da anistia. Então, está preocupado com essas reparações, que são mais do que justas. Mas eu não vi eles questionarem nenhum dos benefícios concedidos aos torturadores... E aí não houve nenhuma tomada de posição do Tribunal de Contas da União. (Palmas.)

Eu acho que não temos que perder tempo com eles, não. Com eles temos que tomar atitude, e uma das atitudes deve ser por parte de vocês: uma manifestação, amanhã, à porta do Tribunal de Contas da União, mostrando a insatisfação de todos vocês que estão, neste momento, demonstrando que já devem ter percebido o tamanho, desculpem a expressão, da burrada que fizeram, porque agora nem comparecem para discutir essa questão.

Outra posição que já discuti hoje com o Paulo Abrão, que é o Presidente da Comissão de Anistia, e que estamos estudando com a Consultoria Jurídica da Casa, é sobre a possibilidade de o Congresso Nacional votar uma resolução para anular a decisão do Tribunal de Contas da União. (Muito bem!)

Já que nós não temos a oportunidade de contar com as pessoas do Tribunal de Contas, para que aqui venham explicar, já que não temos ninguém do Ministério da Defesa, que só tem atrapalhado... Desde cabos da Aeronáutica, arsenal de marinha, vide oficiais, em todos os casos, sempre atrapalharam.

Então vamos passar diretamente ao nosso debate, e o Dr. Paulo Abrão tem precedência.

Concedo a palavra ao Presidente da Comissão de Anistia, Dr. Paulo Abrão. (Palmas.)

O SR. PAULO ABRÃO PIRES JÚNIOR - Meus amigos, a nossa Mesa se refere à questão das anistias dos cabos da FAB, à aplicação da Lei nº 10.559, em relação à anistia dos cabos da FAB.

Primeiro, eu queria dar o meu testemunho público. Já se disse isso hoje pela manhã, mas faço questão de repetir: são poucos os Parlamentares desta Casa que têm se dedicado efetivamente à causa, que queiram estar aguerridos ao lado dos anistiados e dos anistiandos brasileiros; são poucos os que têm a coragem de utilizar efetivamente a tribuna da Câmara dos Deputados para denunciar publicamente, com todo o vigor, com toda a competência que possuem, o retrocesso histórico que significa a retirada do direito dos perseguidos políticos, que representa a ideia de hoje se criar, 10 anos depois de um processamento de lutas, de tramas, de dores, de sofrimento... Vocês foram convidados pelo Estado. Foi o Congresso brasileiro, os Deputados brasileiros que, ao criarem a lei de anistia e ao darem consecução à decisão que os Constituintes de 1988 tomaram, decidiram no sentido de dar completude à agenda da transição política no Brasil e promover essa reparação, para que vocês pudessem novamente confiar no Estado - um Estado que, no passado, perseguiu vocês -, para que vocês pudessem de novo reconstituir essa confiança pública, essa estima de confiança pública no Estado. Então, o Estado lhes convidou, ao longo dos 10 últimos anos, para que vocês contassem as suas histórias. E o Estado, ao redimir vocês, tenta resgatar um pouco dessa confiança perdida no passado.

Então, Deputado Arnaldo Faria de Sá, que está aqui a nosso lado, que deve receber da nossa parte todos os elogios, todo o testemunho e toda a veemência: vocês que são de São Paulo têm de ter orgulho de ter um Deputado como o Deputado Arnaldo Faria de Sá! (Palmas prolongadas.)

Verdade seja dita: alguns Deputados, no passado, lutaram por esta causa, mas parece que já esqueceram, e o Deputado Arnaldo Faria de Sá permanece na trincheira, demonstrando que é um resistente brasileiro. Então, quero fazer este reconhecimento público, porque de fato, na Comissão de Anistia, todas às vezes que nós precisamos do apoio do Parlamento, ele estava à frente para nos ajudar. (Palmas.)

Eu quero fazer referência aqui à importância deste tema dos cabos da FAB. Para quem não conhece essa história, ela começa ainda durante o processo de elaboração do processo legislativo de tramitação da medida provisória aqui dentro deste Congresso Nacional. Na exposição de motivos do projeto de lei, que culminou na Lei nº 10.559, está escrito explicitamente que, dentre outras razões e justificativas de edição daquela de reparação, estava a da reparação para aqueles que foram atingidos pela Portaria nº 1.104.

Então, O Congresso aprova essa legislação, com a ideia de que isso era um dos objetos constitutivos daquelas 17 situações previstas na lei como atos de exceção. E a ideia de atos de exceção para nós tem de ser muito bem desenvolvida, porque, por vezes, nós erramos ao sustentar que a anistia é devida aos perseguidos políticos. Em verdade, a anistia é devida a todas as pessoas atingidas por atos de exceção, com a plena abrangência do termo. Ou seja, muitas pessoas não tinham tido necessariamente uma militância de esquerda, não tinham necessariamente tido uma militância nas organizações tradicionais de oposição ao regime militar, mas que, nas suas vidas, foram atingidos por atos de exceção.

A Comissão de Anistia, portanto, ainda no início da sua composição, criou uma súmula; e essa súmula declarou que a Portaria nº 1.104 é um ato de exceção. Que historicamente, a partir do propósito ao qual ela serviu, embora ela embutisse dentro de si uma medida administrativa de limitação do tempo de reengajamento dos militares dentro das Forças Armadas, de algum modo essa medida administrativa, por ser sucessiva também à a Portaria nº 1.103, que afastou diretamente os dirigentes da CAFAB, e por ela também ter sido originada de atos sigilosos, de portarias reservadas, que geraram a instituição da mesma... E essas portarias reservadas, às quais os resistentes brasileiros tiveram acesso, antes que fossem incineradas, como se diz que foram os demais arquivos da ditadura, elas também faziam referência à necessidade de afastamento daqueles que estavam sendo considerados subversivos.

A Comissão de Anistia, a partir dessa análise histórica, porque esta é uma noção que temos que ter clara, diferentemente do Tribunal de Contas da União, diferentemente da Advocacia-Geral da União, que é composta por um corpo técnico, evidentemente de alto nível técnico e jurídico, mas que faz uma análise fria da documentação, tal qual ela lhe chega, e que elabora pareceres acima dos papéis... E os papéis nem sempre representam os dramas existenciais; e nem sempre o mundo da vida é capaz de estar registrado nas linhas dos papéis frios, ou das letras mortas de documentos que por vezes são acessados só depois de muita luta por parte dos anistiandos.

Então, ao se debruçarem sobre a leitura daquela letra fria, podem os técnicos do Tribunal de Contas e da Advocacia-Geral da União chegar a uma conclusão diversa daquela conclusão da Comissão de Anistia? A diferença é que a Comissão de Anistia é um órgão do Estado criado pelo Poder Legislativo brasileiro para ser um órgão administrativo de reparação. A ideia de se criar uma comissão de reparação, segundo uma lei indenizatória, criando-se um regime especial de indenização, surge não somente com o propósito de afastar a judicialização excessiva ou o desnecessário ingresso de cada um individualmente no sistema judiciário para fazer valer aquilo que a Constituição já dizia, mas sim criar um procedimento administrativo simplificado de oitiva das vítimas e, diante da ausência dos arquivos, fazer uma reflexão histórica e política sobre aquilo que alegava a Comissão de Anistia.

Então, diferentemente dos técnicos do Tribunal de Contas e da Advocacia-Geral da União, a Comissão de Anistia faz uma análise histórica e política das documentações que são trazidas. O Parlamento brasileiro explicitamente criou esse órgão com essa competência específica e há 10 anos disse que a análise dessas decisões, dessas alegações e requerimentos por perseguição política e atos de exceção por parte da Comissão de Anistia se perfectibilizaria pelo ato discricionário e decisório do Ministro da Justiça.

Esse ato decisório do Ministro da Justiça é um ato terminativo, é um ato que se exaure em si mesmo, porque o Estado, o Parlamento, o Poder Legislativo delegou ao Poder Executivo os poderes para, portanto, fazer essa reparação histórica, concluir essa agenda da transição política brasileira e, com isso, finalizar a análise desses requerimentos.

Então, a Comissão chegou ao entendimento de que a Portaria nº 1.104, elaborada em 1964, impediu aqueles cabos que vinham das fileiras e que haviam ingressado ainda durante o Governo João Goulart de darem continuidade a sua carreira dentro das Forças Armadas, porque esse mesmo movimento dos cabos e sargentos foi aquele movimento insurgente e contrário àquelas forças reacionárias que gostariam de tomar o poder naquele momento, e assim o tomaram. E por enxergarem essa resistência interna dentro das Forças Armadas, editou a Portaria nº 1.104.

Essa foi a análise histórica que a Comissão de Anistia fez a partir de estudos, a partir de relatos, a partir de testemunhos, a partir da oitiva das vítimas, a partir dos poucos documentos acessíveis, e não somente a partir de um olhar técnico-jurídico da legislação. E ela tomou essa decisão.

Quero dizer que, quando a Comissão de Anistia tomou a decisão de que a Portaria nº 1.104, ao limitar o reengajamento dos cabos dentro das Forças Armadas, se constituía em ato de exceção, naquele momento histórico, independentemente das leis atuais estabelecerem ou reproduzirem essa limitação administrativa, naquele momento histórico ela tinha uma determinada finalidade. Portanto, ela reconheceu a anistia dos cabos da FAB atingidos pela Portaria nº 1.104. (Palmas.)

O SR. PRESIDENTE (Deputado Arnaldo Faria de Sá) - Peço licença ao Dr. Paulo Abrão para fazer o registro da presença de 2 Parlamentares, até porque são Parlamentares que sempre estiveram engajados nessa luta; e neste momento precisamos de mais e mais Parlamentares para podermos refutar as decisões intempestivas e abusivas do Tribunal de Contas da União. Estão presentes os Deputados Pedro Wilson, do PT de Goiás, e o Deputado Chico Alencar, companheiro do PSOL do Rio de Janeiro. (Palmas.)

O Dr. Paulo Abrão está com a palavra.

O SR. PAULO ABRÃO PIRES JÚNIOR - Para homenagear esses Deputados V.Exa. pode me interromper sempre, porque é uma homenagem legítima e justa. (Palmas.)

Ocorre, amigos, e quero aqui registrar, que isso não pode ser ignorado, porque isso para mim é a informação mais importante sobre esse processo. O dado real é que, quando a Comissão de Anistia tomou essa decisão no seu colegiado de 20 conselheiros, do qual eu não fazia parte... Vocês sabem que eu me tornei Presidente da Comissão de Anistia a partir de abril de 2007. E aqui estamos falando de momentos prévios à minha entrada na Comissão de Anistia, de presidentes e conselheiros anteriores. Pois bem. Essa decisão foi tomada na Comissão de Anistia com o apoio, a concordância, a aprovação e a defesa do representante do Ministério da Defesa no âmbito da Comissão de Anistia. Essa decisão foi tomada nesses termos. Posteriormente, é verdade que a Comissão restringiu sua análise quanto à aplicação da Portaria nº 1.104 e reconheceu que ela deveria ser considerada como ato de exceção apenas para aqueles que haviam ingressado na Força até a edição da portaria, segundo a premissa de que aqueles que ingressaram depois da portaria já sabiam que essa era uma regra do jogo e não poderiam alegar desconhecimento dela.

Portanto, enquanto medida de exceção, medida restritiva de direitos, ou de projeção de expectativas de direitos, ela teria atingido somente aqueles que, quando ingressaram nas Forças, não tinham essa limitação ao seu direito de trabalho. Então, ela se torna ato de exceção na medida em que ela restringe um direito fundamental. E este conceito de ato de exceção é muito importante. Toda e qualquer restrição a direitos fundamentais que tenha ocorrido num ambiente autoritário ou segundo determinações e decisões de organismos ou instituições ilegítimas de Estado se constitui ato de exceção.

As pessoas podem dizer assim: tenho direito de ir e vir, e o Estado limita o meu direito de ir e vir; tenho direito a habeas corpus, e o Estado limita meu direito a habeas corpus; tenho direito ao trabalho, e o Estado arbitrariamente arranca o meu trabalho; tenho direito à integridade física, e o Estado me tortura; tenho direito à liberdade, e o Estado me prende; tenho o direito ao devido processo legal, e o Estado me processa sem me dar o direito ao contraditório; tenho direito à privacidade, e o Estado cria uma estrutura de monitoramento ilegal sobre a minha vida; tenho direito aos documentos relativos à minha vida, e o Estado vem e arranca a minha cidadania; tenho direito à minha nacionalidade, e Estado vem e me torna um banido ou um apátrida; tenho direito à minha identidade, e o Estado vem e me obriga a cair na clandestinidade e retirar a minha identidade; tenho direito ao convívio familiar, e o Estado me obriga a me afastar do convívio da minha família; tenho direito à minha nacionalidade brasileira, e o Estado arranca da pessoa a sua própria identidade, como fez com os banidos; tenho direito ao livre trabalho, e a estrutura autoritária do Estado cria uma estrutura de listas sujas, com apoio das federações das indústrias, para impedir que aqueles trabalhadores que se engajavam num ambiente que lutava pelo direito à livre sindicalização dos trabalhadores e que fazia greves pudessem arrumar outros empregos para suas vidas.

Esses são atos de exceção! (Palmas.)

Tenho uma carreira pública, e essa carreira pública é interrompida por uma medida que não estava posta quando eu ingressei nos quadros do serviço público. Essa medida também é um ato de exceção. E, nesses termos, sabendo-se fazer uma correspondência entre o que são direitos fundamentais lesados no ambiente autoritário e, portanto, identificar o que é ato de exceção, não pode haver dúvida de que trabalhadores tinham consigo uma expectativa de carreira no serviço público e um ato restringiu essa carreira, cuja consequência era o próprio afastamento dessa pessoa do cargo público que ela tinha. Então não pode haver dúvida de que estamos diante de um ato de exceção.

As pessoas podem alegar hoje que boa parte desses militares, desses cabos não era de esquerda, que alguns deles não eram resistentes, alguns deles não tinham militância ideológica ou, quem sabe, eram de direita; que alguns deles, quem sabe, apoiaram o golpe em 1964. Mas o que nós dissemos, de público e bom tom, é que essa análise ideológica tem de ser afastada, porque nós rejeitamos o estado de exceção, nós rejeitamos as ditaduras, sejam elas de esquerda, sejam elas de direita. Nós rejeitamos qualquer tipo de ato de exceção! (Palmas.)

No Brasil, predominantemente, é a esquerda que é reparada. Mas nem todos. Alguns até já foram; hoje não são mais. Outros não eram, e mais outros são hoje. Enfim, o dado concreto é de que, no Brasil, se instalou uma ditadura de direita. E é natural que a maioria dos reparados seja de esquerda.

Nos países do Leste Europeu se instalaram ditaduras de esquerda. E a maioria dos que são reparados lá hoje são de direita, dentro dessa noção estanque de direita e esquerda, que hoje se torna complexa, mas que, de algum modo, ainda é muito bem definida.

Então, meus caros, não é essa a questão que nós estamos analisando. Estamos analisando quem foi atingido por ato de exceção.

Quando a Comissão de Anistia hoje declara anistiado político e pede desculpas às crianças que foram presas com os pais, aos jovens que foram obrigados a se afastar da sua escola, aos jovens que tiveram de se afastar de sua família e tiveram de viver no exílio, aos filhos do exílio que tiveram de nascer fora e não puderam conviver com sua pátria e hoje têm dificuldade de reintegração em seu país, quando a Comissão faz isso, não está analisando se essas crianças de 4,5,6,7 anos de idade, algumas até torturadas dentro da prisão, eram ou não de esquerda, tinham ou não concepção ideológica, mas, sim, que elas haviam sido atingidas por ato de exceção.

Então, a partir dessa noção... E esses conceitos são importantes, porque são muito pouco desenvolvidos no pensamento jurídico brasileiro os direitos da transição. É um campo próprio aquilo que nós chamamos de direitos da transição política. Não é à toa que existe na Constituição um rol de dispositivos, que são os Atos das Disposições Constitucionais Transitórias. Eles não estão nem sob a égide do pleno Estado de Direito, e, evidentemente, não mais estão sob a égide do Estado autoritário. Mas são regras transitórias. E o Estado criou essa regra transitória, criou a Comissão de Anistia para reconquistar a confiança pública daquele cidadão ofendido e violado na sua integridade física e psicológica pelo seu Estado. E esse processo lento e gradual de resgate da confiança pública não pode hoje ser alterado. Não pode, 10 anos depois, se anunciar que se vai rever tudo, que se vai começar tudo de novo, que os direitos das vítimas não eram aqueles, que o compromisso feito pelo Estado com as pessoas não era bem esse. De novo, uma quebra de compromisso? De novo, uma quebra da confiança pública? De novo, uma quebra da conciliação e da pacificação nacional? Então, decisões que parecem eminentemente técnicas têm reflexos, do ponto de vista histórico e político, e nós aguardamos que as autoridades públicas tenham noção dos reflexos históricos e políticos das decisões também tomadas por elas.

A partir disso, meus amigos, de 2004 até 2006, a Comissão de Anistia anistiou quase 3.800 cabos da FAB. Muitas senhoras, viúvas, e outros muitos não puderam nem ver em vida a sua reparação.

Ocorre que, para nossa estranheza, depois de tantos anos realizando essas anistias, com o voto - eu ressalto novamente - favorável do representante do Ministério da Defesa dentro da Comissão de Anistia, o Ministério da Defesa apresentou ao Tribunal de Contas da União e à Advocacia-Geral da União pedidos de revisão dessas anistias, agora discordando, entendendo que não poderiam ter sido concedidas, alegando que a portaria não foi um ato de exceção, mas sim um ato administrativo, e tanto é assim que até hoje ainda vale. Mas ela vale para aqueles que ingressaram depois. Ela não pode valer pelo menos para aqueles que foram atingidos quanto àquela expectativa de projeto de vida e de carreira pública naquele momento.

É evidente que há toda uma discussão sobre o pós-64, se também esses devem ser anistiados; ou, se não devem, se existe ato de exceção só para trás, sem gerar efeito para a frente. Essa discussão também vale a pena ser realizada. (Palmas.) De toda forma, estamos lutando para garantir aquilo que foi assegurado.

O que quero atualizar para os senhores com relação a essa questão - e realmente lamento muito que o representante do Ministério da Defesa não esteja aqui, nem o da Advocacia-Geral da União, para explicar a perspectiva deles - é que a Comissão de Anistia só tem esta perspectiva: o Ministério da Defesa concordava, entendeu que era assim, e anistiamos. Aí entraram com um requerimento no Tribunal de Contas da União contra as anistias para os cabos da FAB. Pois bem, o Tribunal de Contas da União fez uma análise meramente técnica - evidentemente, não cabe ao TCU fazer uma análise histórica e política; isso cabia à Comissão de Anistia -, e disse: "Realmente, para nós, a portaria não é um ato de exceção; ela é só um ato administrativo. A nosso juízo, somente aquele em cuja ficha de alteração estiver registrado, dentro do Ministério da Defesa, que foi um perseguido político é que pode ser anistiado". Criou-se, então, um critério que não havia sido aventado antes.

Porém, naquele momento, o Tribunal de Contas foi sábio, porque disse: "De toda forma, a competência para dizer o que é e o que não é ato de exceção no Brasil é exclusiva da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. De toda forma, nós vamos mandar o nosso parecer para a Comissão de Anistia, recomendando a eles essa nossa decisão, como mera sugestão. Mas são eles quem decidem se, afinal, a Portaria nº 1.104 é ou não é ato de exceção".

A Comissão de Anistia recebeu o parecer da Advocacia-Geral da União e reafirmou o seu entendimento de que a Portaria nº 1.104 é ato de exceção para os que ingressaram com o pedido até data anterior a ela. (Palmas.)

Porém, a Consultoria Jurídica do Ministério da Defesa, com base na decisão do Tribunal de Contas da União, entrou com uma representação, junto à Advocacia-Geral da União, dizendo que o TCU havia mandado a Comissão de Anistia rever as anistias passadas e que, portanto, a AGU tinha que decidir em relação a isso, para enquadrar o Ministério da Justiça, a Comissão de Anistia.

A Advocacia-Geral da União também deu seu parecer. O parecer do agente técnico da AGU foi no mesmo sentido daquele do Tribunal de Contas: "A portaria não é de exceção. Apenas pode ser anistiado aquele com efetivo registro de que foi perseguido político".

Portanto, senhores, trabalha-se com a ideia de que a anistia só vale para quem foi perseguido político. Está-se ignorando, assim, a noção de atos de exceção. Por isso existe uma comissão de reparação.

Mas a Advocacia-Geral da União também diz no seu parecer: "De toda forma, cabe à Comissão de Anistia do Ministério da Justiça".

Isso foi o que entendi do parecer que li da AGU, bem como daquele do Tribunal de Contas da União.

Apesar disso, o Ministério da Defesa, tenho que informar - isso é público, e não é nenhuma acusação; o Ministério não nega que realmente está fazendo isso; são ofícios interministeriais -, pegou o seu parecer, o do Tribunal de Contas e o da Advocacia-Geral da União e enviou um ofício para o então Ministro da Justiça Tarso Genro, dizendo: "A decisão é esta. Solicitamos que sejam revistas todas as decisões do passado".

O Ministro Tarso Genro, por sua vez, devolveu para o Ministro Nelson Jobim, dizendo: "Ministro Nelson Jobim, a competência exclusiva para dizer o que é ato de exceção é da Comissão de Anistia. Eu e todos os Ministros da Justiça que me antecederam, desde 2001, tomamos essa decisão. Cabe ao Ministério da Defesa, única e exclusivamente, com base na Lei nº 10.559, cumprir essa decisão". (Palmas.)

Porém, o Ministro da Defesa encaminhou novo ofício ao Ministério da Justiça dizendo que não concordava ou que não era bem assim e que, portanto, precisam, sim, serem revistas todas as decisões do passado. Reencaminhou, devolveu para o Ministério da Justiça.

Que decisão tomamos? Não podemos ficar eternamente nessa troca de ofícios intermináveis; precisamos resolver a vida das pessoas. Então, o Ministério da Justiça encaminhou à Advocacia-Geral da União todos os pedidos de revisão que chegaram por parte do Ministério da Defesa, dizendo: "O Ministério da Defesa está dizendo que o parecer de vocês, Advocacia-Geral da União, obriga a Comissão de Anistia a rever todas as decisões do passado. Nós estamos entendendo que não". Mas o Ministério da Defesa insiste e está encaminhando semanalmente uma lista de pedidos para que processos sejam revistos, caros amigos da FAB.

Estamos juntando tudo. Encaminhamos à Advocacia-Geral da União tudo que tínhamos - hoje deve ter chegado mais - para que ela então decida. Eu entendi, do parecer da Advocacia-Geral da União que não tem que se rever nada do passado. A Comissão até pode alterar o seu entendimento quanto ao futuro.

Aliás, o dado verdadeiro - também não posso me omitir em relação a isso - é que a atual composição da Comissão de Anistia ainda não tomou uma decisão definitiva quanto ao juízo de mérito sobre a questão. O que estou relatando aqui é uma defesa intransigente das decisões tomadas pelas composições anteriores da Comissão de Anistia, porque entendemos que quem sucede o outro tem o dever de defender o trabalho feito anteriormente. (Palmas.)

Então, quero deixar claro para os senhores que hoje o processo está na Advocacia-Geral da União - esse é o estado das artes -, para que ela diga, afinal de contas, quem está certo: o Ministério da Justiça, que entende que não há, nem na decisão do TCU nem na decisão da AGU, determinação para que tudo seja revisto, ou o Ministério da Defesa, que diz que realmente há a ordem de que tudo para trás tem de ser revisto.

A Advocacia-Geral da União terá de decidir. Estamos aguardando a decisão deles. Até lá continuaremos fazendo as defesas das decisões do passado. Evidentemente, faltam os últimos processos para serem julgados. Mas não vamos julgá-los já porque estamos diante de uma controvérsia jurídica.

Deixo, então, este relato de qual é o estado das artes hoje. Acredito piamente que os cidadãos têm o direito de saber, por parte das autoridades, o que está acontecendo. Todos têm de ser informados com relação a isso para que possam também se organizar, como permite a sociedade democrática.

Muito obrigado. (Palmas.)

O SR. PRESIDENTE (Deputado Arnaldo Faria de Sá) - Cumprimento o Presidente da Comissão de Anistia, do Ministério da Justiça, Paulo Abrão, que inclusive voltará a falar, pois temos tempo para isso, já que outros convidados não compareceram. Temos, então, oportunidade de dar esclarecimentos importantes.

A propósito, peço ao Dr. Paulo Abrão cópia desse ofício do Ministério da Justiça à AGU, para cobrarmos, via Comissão Especial da Anistia, uma resposta, o mais rapidamente possível, colaborando com todo esse trabalho. (Palmas.) Graças a Deus, a nossa Comissão Especial de Anistia - CEANISTI existe para poder colaborar com os anistiados.

Eu gostaria de obter 2 informações importantes do Dr. Paulo Abrão. Amanhã, haverá, na Caravana da Anistia, um ato que fará parte do nosso seminário. Eu gostaria que o Dr. Paulo Abrão nos informasse a respeito desse ato de concessão de anistia ao Betinho. Por favor, Dr. Paulo Abrão.

O SR. PAULO ABRÃO PIRES JÚNIOR - Antes, quero agradecer o convite que a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados fez à Comissão de Anistia. Amanhã, às 14 horas, realizaremos uma sessão pública da Comissão de Anistia neste Congresso. Trata-se da Caravana da Anistia.

Cada vez que nos reunimos fora das 4 paredes de mármore do Palácio da Justiça, chamamos isso de Caravana da Anistia. Percorremos o Brasil inteiro, o que inclusive corrobora a ideia de que a Comissão de Anistia é absolutamente transparente quanto a todos os seus critérios. Não existe, a propósito, nenhuma outra comissão de reparação na América Latina cujo processo deliberativo seja feito na frente da sociedade - as sessões são abertas, públicas. São 10 anos de exemplo de transparência para a sociedade brasileira em relação a esse debate.

Amanhã, trataremos de 4 casos muito emblemáticos. Por isso eu gostaria de convidar a todos. Na realidade, são 7 casos, mas neste momento quero destacar 4 deles, embora todos sejam muito importantes. Amanhã, primeiro, vamos analisar o requerimento de anistia do glorioso Betinho, que foi exilado. (Palmas.) A sociedade esperou tanto pela volta do irmão do Henfil! Ele voltou e depois liderou em nossa Nação um dos maiores movimentos de solidariedade a que assistimos na nossa história, a campanha contra a fome. Amanhã, vamos conhecer esse pedaço da história.

Depois, será apreciado o processo do jornalista Mário Alves, morto pela ditadura militar. (Palmas.) Todos sabem que sua morte foi uma das mais brutais de que se tem conhecimento cometida pela repressão. Foi brutal! É difícil até falar.

Ainda analisaremos o processo do filho de Apolônio de Carvalho, Raul de Carvalho, para mostrar como a ditadura gera efeitos transgeracionais. (Palmas.)

Ainda será apreciado o caso do diplomata Jom Tob Azulay, que se desligou do Itamaraty em 1976 porque teve a coragem de fazer uma exibição pública quando trabalhava no Consulado dos Estados Unidos em Los Angeles. Ele fez essa exibição pública, na casa de uma pessoa, para 40 indivíduos, entre os quais estava o próprio Tom Jobim. Era um documentário feito por um cineasta norte-americano - hoje é um dos grandes cineastas de Hollywood - que estava no Chile no momento da chegada dos exilados brasileiros àquele país. Ele entrevistou diretamente os exilados brasileiros chegando ao Chile e fez um documentário, em tempo real, com os relatos das torturas que essas pessoas tinham sofrido. Esse documentário no Brasil não é divulgado, nunca o foi, senão em circuitos underground mesmo, fora do eixo comercial ou até mesmo do circuito alternativo. Enfim, Jom Tob Azulay fez essa exibição. A partir do momento em que exibiu para a sociedade lá fora as denúncias das torturas que ocorreram na ditadura brasileira, passou a ser pressionado dentro do Itamaraty para se afastar.

Ele requereu o seu direito de reintegração aos quadros da diplomacia. Amanhã o seu processo também será apreciado pela Comissão, ocasião em que serão analisados os documentos e as circunstâncias.

Eu quero convidar todos para assistir a essa reunião.

Há ainda outros 3 casos: o de um camponês do Araguaia que também foi torturado, um caso muito importante para nós; o da esposa de Mário Alves e o de uma perseguida política que foi muito torturada. (Palmas.)

O SR. PRESIDENTE (Deputado Arnaldo Faria de Sá) - Obrigado pelas informações.

Portanto, vai ser feita aqui a reunião.

Antes de passar a palavra ao Manes, quero fazer outra pergunta importante, aproveitando a oportunidade de ter o Dr. Paulo Abrão aqui conosco.

Como ficou a questão do Arsenal de Marinha, que ainda não tem o ato formal? Refiro-me à Caravana da Anistia no Rio de Janeiro. Como está essa situação?

O SR. PAULO ABRÃO PIRES JÚNIOR - Bom, pessoal, quanto ao Arsenal de Marinha, a Comissão de Anistia decidiu que a interpretação constitucional adequada é a de que não pode haver discriminação negativa na Constituição.

Discriminação negativa é o seguinte: é como se a Constituição democrática desse direito para todas as pessoas, menos para um conjunto. E o constitucionalismo democrático rejeita, por princípio, as discriminações negativas. Ele permite discriminação positiva, situação em que são dados alguns direitos complementares para um conjunto de cidadãos em relação aos quais se reconhece dívida social do Estado.

Quando o Estado estimula, por exemplo, as cotas para as mulheres nas eleições, para que pelo menos 20% dos candidatos sejam mulheres, em tese poderia ferir o princípio da igualdade formal entre homens e mulheres. Mas, ao fazer essa discriminação favorável, positiva, às mulheres, o Estado resgata uma dívida pública. O mesmo vale para as cotas, ações afirmativas, políticas públicas voltadas para o resgate da dívida social com os negros ou com os índios.

A Constituição, portanto, autoriza discriminações positivas. Na democracia, é inaceitável discriminação negativa: temos os mesmos direitos, mas vocês aqui, este conjunto de pessoas, não podem ter esses direitos. Esse tipo de discriminação fere os princípios constitucionais.

Então, entendemos que o art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias não pode ser lido na perspectiva de que não podem ser anistiados aqueles corajosos trabalhadores que, dentro do Arsenal de Marinha, fizeram um movimento em defesa do seu direito de sindicalização, entre outros direitos, e por isso foram demitidos da Marinha. A Comissão deliberou que essas pessoas, assim como todos os trabalhadores demitidos pela ditadura militar, conforme o § 5º do art. 8º do ADCT, têm direito Não pode haver discriminação negativa, contra esse conjunto de trabalhadores, porque eles estariam eventualmente ligados ao Comando da Marinha. (Palmas.)

A Comissão resolveu conceder a anistia, porém o Ministério da Defesa apresentou - tive conhecimento disso somente agora - uma representação junto à Advocacia-Geral da União contrariamente à anistia dos trabalhadores demitidos do Arsenal de Marinha. Esse parecer acaba de chegar ao Ministério da Justiça. Haverá a nossa manifestação. Nós estamos colocando a termo o conteúdo da nossa decisão e vamos fazer o encaminhamento para a Advocacia-Geral da União. O Ministério da Defesa pede à AGU que impeça sejam anistiados os trabalhadores do Arsenal de Marinha.

Essa é a situação, hoje, dos processos do Arsenal de Marinha. (Palmas.)

O SR. PRESIDENTE (Deputado Arnaldo Faria de Sá) - Obrigado pela informação, Dr. Paulo Abrão.

Eu solicito a V.Sa. que encaminhe à Comissão Especial de Anistia cópia desse parecer, para que ela possa tomar as providências.

Antes de passar a palavra ao Manes, faço um registro especial da presença entre nós daquela que é a grande responsável pela realização do seminário, Marisa Helena Ferreira. Uma salva de palmas! (Palmas.)

Com a palavra o Sr. Paulo Roberto Manes.

O SR. PAULO ROBERTO MANES - Nobre Deputado Arnaldo Faria de Sá, Dr. Paulo Abrão, demais autoridades, companheiros, o nosso objetivo aqui hoje, na prática, seria discutir 3 leis que obrigam o Estado a cumpri-las: a Lei nº 10.559, conjugada com as Leis nºs 11.354 e 9.784. A primeira dá o direito ao anistiado. Já a Lei nº 11.354 foi feita pelo Estado para pagar o passivo contido na portaria do anistiado. O próprio Estado firmou isso conosco.

Nós somos testemunhas. Eu ajudei, o Capitão Wilson ajudou, o Capitão Guimarães ajudou, outros companheiros ajudaram. Ficamos 1 ano e 8 meses junto com o Governo, depois daquela sessão pública. O Deputado Arnaldo Faria de Sá estava presente. Trouxemos aqui vários Ministros. Estavam presentes aqui 23 Deputados, sentados na primeira fileira, ajudando. Fizemos uma audiência pública com o Ministro da Justiça, com o Presidente da Comissão de Anistia, com o Ministro do Planejamento, Orçamento e Gestão, que, aliás, assumiu compromisso conosco e cumpriu - foi o único que cumpriu até então -, no sentido de que tiraríamos uma comissão de negociação para elaborarmos uma lei.

O Manoel Anísio nos ajudou muito, o Wilson, aquele quinteto de antigamente que tanto foi criticado, de interlocutores. O gozado é que, naquela época em que o quinteto existia, nós ganhamos todas. Conseguiram derrubar o quinteto. Estão perdendo todas. Estamos caminhando para as lutas de 2003, quando começamos tudo novamente. Parece que para virar Governo, e o Governo novo fazer bonito, tem que ter novamente uma luta igual. Se ainda estivermos vivos, vamos começar tudo de novo, vamos voltar ao Presidente da República, vamos fazer escândalo igual ao que eu já comecei a fazer ontem no plenário da Câmara. Nós estamos andando para trás.

Enfim, a Lei nº 11.354, que derivou da Medida Provisória nº 300, em acordo, em audiência pública aqui, firmado com o Estado, definiu o pagamento do passivo a todo anistiado contido em suas portarias de anistia, quer militar, quer civil. O Estado franqueou esse chamado termo de adesão para alguns, mas para outros não. E todos têm a mesma portaria anistiadora.

A maioria desses companheiros anistiados da FAB tem hoje 8 anos de anistia. A lei é bem clara. A partir de 5 anos, eles têm a chamada segurança jurídica, a estabilidade definida. O TCU já nos disse, por várias vezes, que não está sujeito à autotutela, como ouvimos hoje de manhã, diplomaticamente. Para eles, pouco importa se o cidadão estiver há 20 anos em folha. Eles não reconhecem a decisão da Comissão de Anistia de promover a classe militar.

Nós ouvimos isso do próprio Tribunal de Contas da União - aliás, o Deputado Arnaldo se expressou muito bem. Eu sou ex-condenado de auditoria militar. Para fazer uma defesa, fui revistado. Não tem diferença nenhuma dos tribunais de exceção antigos. Nenhuma! A propósito, o Sr. Presidente da República deve se preocupar com isso, porque, pelo caminhar desse tribunal, de repente, quem sabe, ele vai poder depor o Presidente.

Mas a minha preocupação aqui era com o efetivo cumprimento da anistia política. A Lei nº 10.559 está aí. A Lei nº 11.354 foi feita. E a Lei nº 9.784 está em vigor desde 1999. Ela já é meio velhinha. Não dá para a União dizer que não a conhece. Era esse o meu objetivo primário.

Como o Dr. Paulo Abrão tocou num ponto meio delicado, eu gostaria de lembrar a S.Sa. que a súmula vinculante da Comissão de Anistia, que fixa a Portaria nº 1.104 como um ato de exceção, é bem clara, ou seja, "até 19 de julho de 1971". É a data dela. (Palmas.) Até 19 de julho de 1971. Menciono os 495 cabos anistiados. Segundo os grandes estudiosos, segundo os juristas - eu não sou jurista -, não existia desanistia no Brasil, não existe essa figura jurídica. Aliás, vimos, em julgamento de ADPF, o Supremo agora falando sobre a Lei nº 6.683. Apesar de muitos não concordarem com o voto do Relator, Ministro Eros Grau, ele foi muito claro: "Quem é anistiado anistiado é". Não existe a desanistia. Isso foi dito pela Suprema Corte. (Palmas.)

Apesar da linha ideológica, da posição da própria OAB, a qual pertenço, sobre o motivo da ADPF, o que estou discutindo é o mérito da visão da figura do anistiado. Não existe a desanistia.

Nunca ouvi falar em meio grávida. Ou a mulher está grávida, ou não está grávida. (Palmas.) A Comissão de Anistia de então - não é uma crítica a V.Sa., porque não é de sua gestão - anistia n cabos da Força Aérea até 19 de julho de 1971. Muito bem. Troca-se a Comissão de Anistia e o Presidente. Chega o novo Presidente - até então, eu sou interlocutor e carregador de abacaxi - e me diz: "Manes, não pode mais o cabo ser suboficial. Ele vai ter de ser primeiro-sargento". Aquela mesma Comissão que declarou uma condição anistiou etc. Conclusão: ficaram 601 cabos anistiados como suboficiais com proventos de segundo-tenente. E o resto: anistiados como segundo-sargento com proventos de primeiro-sargento. A mesma regra, o mesmo regulamento, em tese regido pelo mesmo estatuto.

A estabilidade do cabo. Muito se discute se é ato político ou não. Discute-se se a Portaria nº 1.104 é ato administrativo, se não é ato político. O próprio Estatuto dos Militares, a Lei nº 6.880, em vigor desde 1980, dispõe que o cabo é estável com 10 anos. Ora, então, no caso de quem vinha na carreira e foi expurgado por ato político antes de completar os 10 anos, é óbvio que é ato político. Como V.Exa. esclareceu muito bem, é uma das nuanças dos atos de exceção.

Não estou perguntando aqui quem tem carteira do PT, quem é "ista", quem é narcisista, quem é maoísta, quem é trotkista, quem é comunista, quem é egoísta. Não me interessa. A Constituição Federal e a Lei nº 10.559, quando decidiram pelas regras de anistia no País, não colocaram nenhum "ista". Colocaram a situação de o cidadão fazer prova de que tem o direito a pleitear a anistia.

Paulo Manes, por exemplo, pegou 20 anos de cadeia pela Lei de Segurança Nacional. O TCU está para julgar o meu processo e está alegando que eu não tenho direito à anistia, porque eu era perigoso, fui condenado a 20 anos e não posso ser anistiado. Mas eu não estou me preocupando, o que me interessa é o espírito da lei.

O Deputado fez aquela observação na abertura dos trabalhos. Até parece telepatia. Eu fiquei tão feliz... Sinal de que ainda sei alguma coisinha.

Os Deputados muito nos honram com suas presenças.

Seção II, Das Atribuições do Congresso Nacional. O art. 48 trata de anistia. O art. 49 estabelece:

"Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional:

..................................................................................

V - sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa; (...)"

O SR. PRESIDENTE (Deputado Arnaldo Faria de Sá) - É o Poder Executivo.

O SR. PAULO ROBERTO MANES - Sim.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Arnaldo Faria de Sá) - Por analogia.

O SR. PAULO ROBERTO MANES - Por analogia.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Arnaldo Faria de Sá) - É por isso que eu disse que a Consultoria da Câmara tem de discutir isso, porque essa condição explícita é ato do Poder Executivo. No caso, é ato do Tribunal de Contas da União.

Entendo que o Tribunal de Contas da União não tem independência. Ele é um órgão auxiliar do Congresso Nacional. Portanto, o Congresso Nacional pode tomar uma atitude para impedir a continuidade de uma decisão do Tribunal de Contas da União, aliás totalmente absurda. (Palmas.)

O SR. PAULO ROBERTO MANES - Cito o inciso XI do mesmo art. 49:

"Art. 49 .....................................................................

................................................................................

XI - zelar pela preservação de sua competência legislativa em face da atribuição normativa dos outros Poderes; (...)"

Meu tempo, que não é longo, está se esgotando. O que eu gostaria de dizer é que o que está em jogo, pela distorção do entendimento do TCU, e até que se derrube a medida deles, não é mais a questão da Portaria nº 1.104 nem a de cabo, é a de 100% dos anistiados brasileiros.

Obrigado. (Palmas.)

O SR. PRESIDENTE (Deputado Arnaldo Faria de Sá) - Agradeço ao Paulo Roberto Manes a manifestação.

Antes de encerrar os trabalhos, quero dar alguns avisos. Os coordenadores e relatores das oficinas de ontem deverão permanecer aqui no Auditório Nereu Ramos a fim de que seja redigido o documento oficial do seminário.

Após o encerramento desta nossa reunião, será servido um lanche no hall do auditório.

O seminário reiniciará seus trabalhos amanhã, às 8h30min.

Não vou passar ao debate porque o Dr. Paulo Abrão tem compromisso e já debateu hoje na Comissão. Informo que ele está à nossa disposição.

Lamento a ausência dos representantes do Tribunal de Contas da União, que aqui deveriam ter sido questionados por nós, assim como a ausência dos representantes do Ministério da Defesa, que, na verdade, é quem está por trás de tudo isso contra nós.

Parabéns! Até a vitória final dos anistiados! (Palmas.)