CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ

Sessão: 304.3.54.O Hora: 09:51 Fase: PE
Orador: ERIKA KOKAY, PT-DF Data: 04/10/2013

A SRA. ERIKA KOKAY (PT-DF. Sem revisão da oradora.) - Sr. Presidente, nós tivemos discussões nesta Casa, esta semana, extremamente importantes, discussões que dialogam entre si, porque têm uma mesma matriz, a de que primeiro nós possamos reconhecer a nossa historicidade, que é o universo de reconhecimento humano.

O ser humano é um ser histórico, e romper a historicidade do ser humano é tirar dele a própria condição humana. Nós somos fruto dos que passaram antes de nós. Os indígenas têm muita clareza disso, todos os povos tradicionais de matriz africana também, e nós também somos semente daqueles que ainda vão vir. Por isso, temos a responsabilidade de preservar o planeta, para que ele possa ser um universo que assegure o direito humano de quarta geração, o direito ao meio ambiente, dentre outros.

Sr. Presidente, esta Casa vivenciou discussões absolutamente fundamentais. Uma delas foi trazida pela população indígena. Nós tivemos centenas de indígenas de várias etnias aqui, durante toda esta semana, para fazer valer a sua voz, para fazer valer a necessidade de que o povo brasileiro reconheça que a nossa forma de ser, a nossa brasilidade tem como vertente a condição indígena, que nós reproduzimos na generosidade do povo brasileiro - que é uma condição indígena - na solidariedade, muitas vezes embotada, muitas vezes comprimida pelas desigualdades sociais, no caráter comunitário que também está presente nos povos tradicionais de matriz africana.

Mais de 80% desses universos são universos de construção comunitária. Os terreiros deste País, que foram criminalizados durante tanto tempo, os terreiros deste País, que muitas vezes sofrem com a violação do direito constitucional à liberdade de credo, agregam, em mais de 80%, atividades comunitárias, agregam atividades de segurança alimentar. São espaços, é um chão, objetivo de construção da solidariedade, do acolhimento e do cuidar.

Por isso, nós tivemos uma reunião ainda esta semana de várias frentes parlamentares, para que possamos eliminar esse etnocídio e esse epistemicídio que existe, porque existe uma tentativa de negar o conhecimento, o conhecimento dos segmentos que foram alvos de um processo de colonização que ainda não se encerrou porque não fizemos o luto dele. Não fizemos o luto dele.

Esse etnocídio, que envolve as populações indígenas, é o impedimento da existência daquele povo enquanto seres humanos, da sua existência cultural, da sua existência étnica. Ele precisa ser enfrentado, precisa ser anulado, para que nós, nos 25 anos da Constituição brasileira, possamos levantar esta Constituição e dizer que não vamos desentranhar da Constituição os direitos da população indígena, nós não vamos desentranhar da Constituição o seu princípio fundante da dignidade humana.

Por isso não tem sentido a PEC 215, que busca trazer para o Legislativo, sem que este tenha condições de fazê-lo, a demarcação das terras indígenas. Isso fere uma cláusula pétrea, que é a cláusula da divisão ou da repartição dos poderes, da independência e autonomia dos poderes, no sentido de o Legislativo querer abocanhar uma função que é estrita do Poder Executivo.

Para além disso, fere o direito adquirido. Para além disso, significa submeter ou anular os direitos da minoria. Vejam: a democracia pressupõe respeitar os direitos da minoria, senão não é democracia. A democracia não é apenas computar como se posicionam as maiorias. Para que ela realmente ganhe musculatura, para que ela realmente transforme a vida do povo brasileiro e se construa nas teias de um Estado Democrático de Direito, ela precisa respeitar os direitos da minoria, senão não vivemos numa democracia.

Diz bem Paulo Freire que a nossa liberdade não termina quando começa a liberdade do outro. Se há alguém aprisionado, aprisionado ou impedido do exercício humano, impedido da dignidade humana, impedido da liberdade, todos nós estamos aprisionados.

Nós temos pelo menos três PECs neste Congresso Nacional que precisam passar pelo crivo da dignidade humana, do respeito à nossa Constituição, e não podem continuar crescendo e afrontando, afrontando a nossa brasilidade a partir do ataque às comunidades indígenas.

A PEC 215 e a PEC 237 visam ao arrendamento das terras indígenas para a criação de gado e plantio de soja, acompanhados da derrubada de florestas, da poluição de águas, nascentes, e do fim da biodiversidade brasileira.

O PLP 227 caracteriza como de relevante interesse público a expropriação dos territórios indígenas, quilombolas e das populações tradicionais para a implantação de infraestrutura, que nós não somos contra e achamos que é absolutamente fundamental, para que o Brasil tenha hidrelétricas, tenha rodovias, mas não podemos construir rodovias sobre os interesses de uma população de quilombolas e de indígenas, populações marcantes e estruturantes na construção da nossa brasilidade.

Há muito mito quando se diz que os indígenas buscam abocanhar um pedaço de terra maior do que aquele a que teriam direito. Mas esses que dizem isso, que repetem o mesmo discurso de 1500, que fazem com que tenhamos a noção de que pedaços do colonialismo invadem a nossa contemporaneidade, fazem com que nós tropecemos na construção de um País eivado de dignidade humana.

Ora, segundo o cadastro do INCRA de 2003, 0,8% dos imóveis rurais possuem área acima de 2 mil hectares e concentram 31,6% da área total das propriedades rurais no Brasil. Ou seja, nós temos uma concentração de terra no latifúndio. Esse mesmo latifúndio elabora o discurso de que os indígenas não têm que ter o direito a uma terra que lhes pertencia e que lhes foi tirada. E, via de regra, como vimos em Mato Grosso do Sul, com os guaranis, ali os indígenas foram utilizados como mão de obra escrava, para destruir a sua própria cultura, construindo as fazendas, e foram confinados em espaço onde não há um exercício da sua própria etnia e da sua própria ancestralidade, da sua própria forma de se posicionar, de ser visto, de ser reconhecido e de ver o outro, que é a cultura desta população indígena.

Por isso, Sr. Presidente, venho aqui para dizer que nós não podemos permitir que nós tenhamos estas PECs e este PLP em funcionamento, em desenvolvimento nesta Casa, sem assumirmos o ônus de que este Congresso, ao invés de honrar a Constituição... Porque nós juramos defender a Constituição. Quando nós tomamos posse neste Parlamento, nós juramos defender a Constituição. E esta tribuna, que escutou esse juramento de defesa da Constituição, via de regra, é utilizada para destruir o que prevê a Constituição sobre os direitos indígenas, a partir da própria terra, que tem que ser homologada. Mas também nós vamos ver, e vimos, todos os dias, que desta tribuna se destila o ódio homofóbico, sexista, que faz com que nós tenhamos uma desumanização simbólica de parte da população.

Por isso, eu venho aqui e lhes digo como está a Comissão de Direitos Humanos desta Casa em uma discussão trazida por tantas etnias de povos indígenas: está com a pauta homofóbica, uma pauta que busca destilar o ódio e hierarquizar os seres humanos, criando uma concepção de que há serem humanos que podem amar e outros que não podem amar. São as câmaras de gás do nazifascismo reeditadas na pós-modernidade que este Brasil vivencia.

Onde está a Comissão de Direitos Humanos desta Casa para fazer frente ao feminicídio que está em curso neste Brasil? Estudo do IPEA aponta que aproximadamente 40% de todos os homicídios de mulheres no mundo são cometidos por um parceiro íntimo. São cometidos por um parceiro íntimo! O objeto do amor, do desejo, da escolha dessa mulher é o agressor, que vai invadindo a sua condição humana, que vai roubando a sua condição de sujeito e vai transformando essa mulher, via de regra, em apenas um espelho do seu próprio desejo, "desfulanizando", despersonalizando, como uma tortura permanente.

Nós vimos também que 29% dos feminicídios ocorreram dentro de casa. A nossa casa, que é o lugar onde nós somos nós mesmos, porque nas ruas nós somos anônimos, a nossa casa, para onde nós queremos voltar todos os dias e para onde queremos que os nossos filhos voltem todos os dias, não pode se constituir num objeto de construção de relações violentas, que transbordam o próprio universo doméstico, alagam as ruas da nossa cidade e fazem com que nós tenhamos uma sociedade onde mais de 50 mil pessoas sejam assassinadas todos os anos, sendo a grande maioria jovens, e jovens negros.

Por isso, Sr. Presidente, venho aqui para dizer que esta Comissão de Direitos Humanos da Casa está absolutamente alheia às reivindicações que pululam no nosso País, às reivindicações que crescem na busca de uma cultura em que se respeite o ser humano, com as nossas diferenças, que passa fundamentalmente pelo respeito às comunidades tradicionais, aos povos tradicionais de matriz africana, que passa pelo respeito às mulheres, para que não haja dor em ser mulher, porque muitos que se negam a analisar esses dados da pesquisa do IPEA vêm aqui para dizer que é preciso extinguir Ministérios. E os Ministérios que têm o alvo dessa concepção de Estado mínimo são os Ministérios que defendem direitos, é o Ministério da Igualdade Racial, é a Secretaria de Direitos Humanos, é a Secretaria de Políticas para as Mulheres. São essas Secretarias que têm feito a transversalidade de políticas públicas, para que nós tenhamos uma sociedade onde o outro seja encarado com os mesmos direitos, para que essa sociedade se paute no exemplo das comunidades dos povos tradicionais de matriz africana ou das comunidades indígenas pautadas na construção comunitária e na construção da solidariedade.

Por isso, encerro, Sr. Presidente, dizendo que a Comissão de Direitos Humanos desta Casa está absolutamente alheia a essa temática, porque é como se a Comissão de Direitos Humanos tivesse sido sequestrada, arrancada do povo brasileiro, e tivesse se transformado nesse palco, do discurso de hierarquizar os seres humanos, do discurso de negar que todos e todas nós, simplesmente porque somos humanos - simplesmente porque somos humanos -, temos o direito de exercer a nossa humanidade, que pressupõe a condição de sujeito, que pressupõe a dignidade, que pressupõe a liberdade.

Aqui venho, Sr. Presidente, para dizer que essa discussão não é uma discussão colateral. Isso não pode ser encarado como a cereja do bolo, não pode ser encarado como adorno de políticas públicas. É estruturante, porque nós queremos as ruas de volta, nós queremos as noites de volta, nós queremos romper o sentimento de medo, que muitas vezes nos transforma em prisioneiros de nós mesmos. E, para que nós venhamos a ter esta sociedade mergulhada na paz, é preciso que haja o rompimento da desumanização simbólica da condição de sujeito, do destino da liberdade, do exercício da dignidade.

É preciso romper essa desumanização que impede o exercício humano, para que nós possamos encarar todo ser humano com igualdade de direitos, a partir da nossa singularidade, porque somos singulares. E, por isso, fazemos parte de uma humanidade que carrega uma bela diversidade, que não pode ser encarada como algo a ser combatido, mas que tem que ser acolhida, agraciada, desenvolvida.

Nesse sentido, tivemos todas essas discussões aqui nesta Casa, e a Comissão de Direitos Humanos ficou refratária a elas. E venho aqui, Sr. Presidente, para dizer que é preciso eliminar os feminicídios, os etnocídios, os epistemicídios, ou seja, a negação do conhecimento, porque as comunidades tradicionais, os povos de matriz africana têm um conhecimento que tem que ser entranhado, absorvido, apropriado, para que não nos esvaziemos a partir disso, e possamos engolir, como pílulas prontas, as concepções, os comportamentos regidos pela mão invisível do mercado e regido por outros países que negam a nossa própria brasilidade.

Encerro apenas lembrando um dado. Quando houve a Lei Áurea neste País, sabem quantos escravos e escravas se libertaram? 5,4%. A Lei Áurea chegou tardiamente. Grande parte dos escravos neste País já tinha conquistado sua liberdade quando chega a Lei Áurea.

Nós não queremos que a nossa legislação, que aponta com o sentido de progresso, a nossa legislação, como está concentrada no projeto de lei do Deputado Luiz Alberto - que assegura os direitos das comunidades ou dos povos tradicionais de matriz africana, ou dos povos tradicionais que envolvem as raizeiras, que envolvem os que vivem na vereda, que envolvem os pescadores, todos esses povos tradicionais -, nós não queremos que esse projeto seja tão tardiamente aprovado por esta Casa, porque temos urgência na construção da democracia, temos urgência no respeito a todas as expressões de humanidade, para que possamos descontruir as teias que nos sufocam, as teias que fazem com que tenhamos uma sociedade tão violenta e tão insegura.

Muito obrigada, Presidente.

O SR. PRESIDENTE (Jhonatan de Jesus) - Parabéns, Deputada Erika Kokay, pelo seu posicionamento e sua postura!